Grupo de Mulheres Brasileiras leva o feminismo para rodas de conversa no Pará

Projeto foca saúde sexual e reprodutiva, combate à violência de gênero e iniciativas de geração de renda

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Belém

​Nas rodas de conversa entre mulheres que acontecem no quintal da pequena casa em Benguí, na periferia de Belém (PA), não existe assunto tabu. Ao pé do açaizeiro e da árvore de cuia, sob a condução de Domingas de Paula Martins Caldas, 68, é quando as lágrimas caem que se abre a possibilidade de retomada dos sonhos.

"Olha, mana, essa questão da união precoce é muito presente aqui na nossa sociedade. É menina de 13, 14, 15 anos que, aos 19, já tem três filhos", afirma ela, que atua no empoderamento de mulheres em situação de vulnerabilidade desde 1986, quando fundou o Grupo de Mulheres Brasileiras (GMB).

"Às vezes, elas se amigam com um companheiro para se livrarem da casa onde vivem, com as opressões e as violências que acontecem ali. Às vezes, mana, é por causa da falta de informação sobre prevenção à gravidez. E, neste caso, como são famílias inteiras vulneráveis, os pais muitas vezes orientam as filhas grávidas a casar", diz ela, expoente do feminismo periférico da capital paraense, que chama de "mana" a todas as suas interlocutoras mulheres.

Segundo Domingas, por se tratar de um problema atravessado por diversos outros problemas, não existe uma bala de prata contra a prática do casamento infantil. E por se tratar de algo que envolve uma cultura machista internalizada pelas próprias mulheres, é nas rodas de conversa que a cilada da união precoce se revela de maneira mais nítida.

Gênero: feminino

Série discute, em oito minidocumentários e reportagens especiais, diferentes aspectos da violência contra a mulher no Brasil

"De todos os trabalhos que fazemos, o das rodas é o mais importante porque muitas meninas e mulheres só reconhecem a violência a que estão sujeitas na escuta da dor das outras", explica Domingas, que criou no Núcleo de Educação Popular do GMB também um espaço de atendimento psicológico quinzenal para mulheres.

E, para ela, é a partir de histórias de superação como a sua própria que meninas e mulheres se inspiram a reinventar as suas próprias histórias, que antes pareciam fadadas à submissão, às violências ou ao abandono.

"Eu mesma fui me empoderar nos movimentos de mulheres", conta Domingas, entregue pelos pais aos oito anos para uma família abastada, onde trabalhou como doméstica até os 13 e onde sofreu violência física, sexual e psicológica.

A pedagoga Domingas Martins (de vermelho) organiza roda de conversa do Grupo de Mulheres Brasileiras, no Pará - Mathilde Missioneiro/Folhapress

Casou-se com a certeza de que teria mais sossego. "Quando casei, o padre dizia que era na alegria e na tristeza, na saúde e na doença. Só que eu comecei a perceber, mana, que esse acordo só funcionava do meu lado! Não funcionava da parte dele. E minha vida piorou mais ainda porque a violência passou a ser dentro da minha própria casa."

Depois de dois casamentos abusivos e três filhos, ela fugiu com as crianças para Benguí, onde encontrou a solidariedade de outras mulheres para retomar os estudos e se reerguer. "O GMB tem a ver com a história da minha vida. Não queria que nenhuma outra mulher passasse pelo que eu passei", afirma a ativista, que também milita na defesa dos direitos de crianças e adolescentes em situação de risco social.

Às vezes, elas se amigam com um companheiro para se livrarem da casa onde vivem, com as opressões e as violências que acontecem ali

Domingas Martins

fundadora do Grupo de Mulheres Brasileiras

O grupo se mantém com a doação de suas integrantes e de apoiadores, às vezes por meio de financiamentos coletivos via internet, e foca a saúde sexual e reprodutiva, o combate à violência de gênero e as iniciativas de geração de renda. São três eixos fundamentais no enfrentamento ao casamento precoce, que complementam um quarto eixo indispensável: o da educação.

"As meninas não sabem se prevenir, não sabem que podem sonhar em ser mais do que esposas e mães, e se tornam totalmente dependentes, sujeitas a muitas violências dentro de casa", aponta ela, para quem a mulher ter renda própria é fundamental. "Sem isso, ela fica sujeita às agressões do marido, presa nessas violências."

Para Domingas, é por esse motivo que muitos homens não incentivam os estudos das companheiras ou sua busca por trabalho. "Com renda, elas conseguem romper com o ciclo da violência", explica. "Mas a gente não fala que tem de romper também com o companheiro, mas que tem que fazer ele entender. E é por isso que temos rodas fechadas de mulheres e rodas abertas para os homens participarem também. Não vamos conseguir uma mudança de verdade conversando apenas entre nós mesmas", conclui.

A matriarca do grupo, que integra o Fórum de Mulheres do Brasil, ajudou a desenvolver também uma série de ações de caráter educativo como palestras, campanhas, cartilhas, cursos e oficinas de capacitação e orientações para vítimas de violência para permitir que meninas e mulheres pobres de Belém possam conhecer seus direitos e deveres, garantir sua sobrevivência e a dos filhos e se enxergarem para além dos estereótipos.

"Desde pequena tem que ter informação e tem que ter estudo de qualidade. Porque se tu não tens informação nem perspectiva, tu acabas cometendo coisas que te prejudicam por causa de ideias que a sociedade pôs na tua cabeça." Domingas se refere a lugares-comuns como o da "mulher mal-amada", o do "ruim com ele, pior sem ele" ou aqueles que fazem meninas enxergarem no casamento um objetivo de vida e um meio de autovalorização.

"Eu ouço as meninas falarem e eu me vejo nos relatos delas", admite Domingas. "E, com isso, posso colocar a minha experiência pra elas. Não é que eu li ou ouvi falar sobre isso, eu vivi."

DENUNCIE

Qualquer pessoa pode denunciar casos de violência contra a mulher pelo Ligue 180 (basta teclar 180 de qualquer telefone em qualquer lugar do país). O atendimento é gratuito e funciona 24 horas.

Especial Gênero: Feminino

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