Mãe morre à espera de filha desaparecida após ação de PM apoiado por Bolsonaro

PF acusa policial de integrar grupo de extermínio; defesa diz que ele foi vítima de armação e que jovem pode estar viva

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Santo Antônio do Descoberto (GO)

Nos primeiros meses de 2018, o tenente-coronel da PM de Goiás Carlos Eduardo Belelli tinha uma meta: ser eleito deputado estadual na disputa em outubro daquele ano. Nas redes sociais, Belelli divulgou um vídeo de um apoiador: o deputado federal Jair Bolsonaro, então pré-candidato à Presidência da República.

"Olá, prezado coronel Belelli, comandante do batalhão de Caldas Novas [GO]. Parabéns pelo trabalho, dando segurança à população. O senhor está indo para a reserva agora, mas sei que não ficará em casa, vai continuar lutando pelo seu estado. Boa sorte nessa nova atividade. Tamo junto, meu coronel", afirma o hoje presidente no vídeo.

Naquele mesmo momento, Carminha procurava a filha, Dallyla Fernanda Martins da Silva, 22. Ela e o namorado, Darley Carvalho, foram retirados de casa à força, em Santo Antônio do Descoberto (GO), uma cidade a 50 quilômetros de Brasília.

Maria do Carmo Silva espera há quase 5 anos por notícias da neta, Dalylla Fernanda Martins da Silva, desaparecida após ser levada junto com o namorado por um grupo de homens na cidade de Santo Antônio do Descoberto (GO) - Pedro Ladeira/Folhapress

"Cadê minha filha?", perguntava Carminha nas ruas a quem conhecia a jovem de perto. "Não sei", era o que sempre ouvia. "Uma hora ela vai bater na porta de casa."

Dallyla e Darley foram arrancados de casa por Belelli e outros PMs suspeitos de integrar um grupo de extermínio, segundo uma investigação da Polícia Federal e do Ministério Público de Goiás. Os dois sumiram por volta na noite de 15 de março de 2017.

O corpo de Darley apareceu jogado à margem de uma rodovia, a 170 quilômetros de distância, no dia seguinte. Ele vestia apenas uma cueca, e tinha uma perfuração no crânio, sem que a perícia tenha localizado um projétil de arma de fogo.

Dallyla nunca apareceu. Carminha morreu há oito meses, esperando a filha bater à porta.

Para a PF e o MP-GO, não há dúvidas de que Belelli liderou um grupo de extermínio e comandou a prisão clandestina dos dois jovens em Santo Antônio do Descoberto.

Segundo as investigações, o grupo é suspeito de praticar assassinatos para alavancar candidaturas de Belelli, associando as mortes a "fatos heroicos".

O advogado do PM diz que seu cliente foi vítima de uma armação e que como Dallyla nunca foi achada, não há provas contra ele.

Um ano depois do que ocorreu na cidade do entorno de Brasília, o policial mergulhou na campanha por uma cadeira na Assembleia Legislativa de Goiás. Ele publicou o vídeo de Bolsonaro –um defensor da ampliação da licença para matar por parte de policiais– em abril de 2018. As urnas consagraram Bolsonaro; Belelli perdeu a eleição.

Meses depois, em dezembro daquele ano, a Justiça atendeu a um pedido da PF e do MP-GO e determinou a prisão do tenente-coronel e de outros cinco PMs suspeitos de integrar um grupo de extermínio. Eles foram soltos em seguida.

Denunciado pela Promotoria, o grupo aguarda em liberdade o processo. A atual fase é de oitivas de testemunhas.

Para os investigadores que atuaram no caso, Dallyla está morta. O inquérito da PF e as audiências em curso na Justiça também partem desse princípio. É o mesmo sentimento dos moradores do Jardim de Alá, bairro periférico onde houve a abordagem policial.

Mas, para familiares da jovem, ainda há alguma esperança de que ela vai reaparecer. É um sentimento parecido com o de Carminha, a mãe, que acreditava na ideia de que a filha esperava a "poeira baixar" para voltar a Santo Antônio do Descoberto.

De fato, o medo prevalece na vizinhança e entre pessoas ligadas aos jovens que teriam sido mortos por policiais militares. São comuns trocas de casas, endereços ocultados dos próprios ex-vizinhos.

O grupo de Belelli deixou o batalhão de Caldas Novas e seguiu para Santo Antônio do Descoberto sem que os subordinados soubessem exatamente o propósito da viagem. A distância entre as duas cidades é de 340 quilômetros.

O militar dizia se sentir ameaçado por Darley, que tinha passagens pela polícia. O namorado de Dallyla passou a contestar, em postagens em redes sociais, a alegação de que o irmão, Douglas de Carvalho, foi morto em confronto com a PM em Caldas Novas, após roubo em uma loja de celular. Belelli esteve à frente da operação, uma semana antes da viagem ao entorno de Brasília.

Testemunhas ouvidas pela PF, entre elas delegados e PMs, confirmaram que Belelli e outros policiais estiveram na cidade de Dallyla e Darley para uma investigação sobre um suposto grupo criminoso do Jardim de Alá. Há relatos coincidentes sobre os carros utilizados para transportar o casal e dados de interceptação telefônica que confirmam a presença do grupo.

"Belelli foi vítima de uma armação de um delegado de Santo Antônio do Descoberto", afirma o advogado do PM, Ricardo Naves. "Até agora não dá para comprovar nada, pois não tem corpo ou a pessoa viva."

Naves confirma que seu cliente e outros PMs estiveram na cidade, inclusive na altura da casa de Darley, mas diz que o grupo retornou para Caldas Novas.

"Não é próprio de uma PM ostensiva fazer esse tipo de coisa, jogar um corpo assim. E admitimos uma hipótese muito forte de que Dallyla está viva em Maceió ou outra região do Nordeste, a partir da leitura de elementos que temos", afirma o advogado.

Sem corpo ou sinal de vida, familiares de Dallyla vivem uma via-crúcis. Eles já estiveram em Goiânia, Anápolis (GO) e Luziânia (GO) para exames de DNA, diante de pistas falsas sobre corpos não identificados em IMLs. Receberam dado irreal sobre um corpo em Abadiânia (GO). Visitaram um hospital psiquiátrico em Brasília para confirmar que uma paciente não era Dallyla.

"A gente quer que ela apareça. Viva, boa, doente, morta. Deus não me tira dessa vida sem eu saber notícia dela", diz Maria do Carmo Silva, 72, avó de Dallyla. A jovem teve dois filhos. A menina, hoje, tem 6 anos. O menino, 8.

Maria, no fundo, tem esperança. "Por que o corpo dele apareceu e o dela não? Tenho esperança de que ela está viva. Não sei, talvez esteja em algum lugar sem poder sair."

A vida de Belelli seguiu. Por tempo de serviço, ele foi promovido a coronel e transferido para a reserva da PM de Goiás no fim de 2019.

Em janeiro de 2020, o militar editou o vídeo de apoio de Bolsonaro e o publicou novamente nas redes sociais, como se tivesse sido gravado por um Bolsonaro já presidente da República.

Pelo PSL, partido usado pelo presidente, Belelli se candidatou a prefeito de Caldas Novas. Teve menos de 10% dos votos e perdeu a disputa. Agora, em 2022, ele quer se eleger deputado estadual, ou chegar ao Congresso Nacional.

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