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Favelas do Rio criam correios comunitários para superar problemas de entrega

Comunidades têm dificuldade para receber correspondência por serem tidas como áreas de risco

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Rio de Janeiro

Rafaela Mariano tem 19 anos e nunca viu um carteiro em sua vizinhança. Moradora do Morro do Salgueiro, na zona norte do Rio, ela diz que esses profissionais não sobem a comunidade por considerá-la área de risco. Ainda que corriqueiro em outras regiões da cidade, em favelas e periferias receber a visita do carteiro costuma ser um evento raro.

"Eu me sinto diferente, porque o correio deveria beneficiar todo mundo, mas pessoas que moram em comunidade não conseguem ter isso", diz ela. "Acho que é preconceito, porque em qualquer lugar hoje em dia pode ter tiroteio ou assalto."

Marcelo da Silva, 53, há 14 anos trabalha no correio comunitário, na favela do Vidigal, zona sul do Rio - Tércio Teixeira/Folhapress

Em nota, os Correios afirmam que as entregas domiciliares são feitas conforme normas que regem os serviços postais, como condições de segurança e indicação correta do CEP e do endereço para a entrega do objeto postal.

Dizem ainda que alterações no serviço podem acontecer em razão dos protocolos adotados para garantir a segurança de empregados, fornecedores e clientes.

Para chegar aonde os carteiros não vão, lideranças das favelas decidiram se organizar e criar correios comunitários. São iniciativas que geram renda nas comunidades, enquanto devolvem aos moradores o direito à comunicação.

Rafaela conhece de perto a importância dessa iniciativa. Desde 2019, ela atua como carteira comunitária no Salgueiro e leva aos vizinhos um serviço a que ela mesma não tinha acesso.

"O projeto beneficiou muita gente. Existem pessoas que não podem sair de casa porque têm problemas de locomoção ou são muito idosas."

O aspecto financeiro é outra vantagem. "Entrei no projeto também porque precisava de uma renda extra", diz a jovem, que usa o dinheiro para completar o orçamento de casa, onde mora com mais cinco pessoas.

Idealizador do projeto dos correios comunitários, Walter Rodrigues explica que a iniciativa no Salgueiro surgiu em 2019 e atende por volta de 350 pessoas. Para receber entregas em domicílio, o morador paga uma taxa de R$ 15 por mês.

"Nas comunidades, as carências são enormes e, quando a pessoa recebe uma correspondência, ela se sente valorizada", afirma Rodrigues, que também é presidente da associação de moradores do Salgueiro. "Melhora a autoestima das pessoas. É algo muito gratificante."

Marcelo da Silva, 53, diz que o correio comunitário ajuda a gerar renda na favela do Vidigal, zona sul do Rio - Tércio Teixeira/Folhapress

Os benefícios dos carteiros comunitários são sentidos também na favela do Vidigal, na zona sul carioca. Por lá, esses profissionais percorrem becos e vielas para garantir que os moradores recebam as contas em dia.

"O nome é a coisa que pessoas pobres e moradores de comunidade mais tentam honrar. Ajudar os moradores a não atrasarem o pagamento é um aspecto positivo do projeto", diz Marcelo da Silva, que trabalha ao lado de três pessoas no correio comunitário do Vidigal.

Essa equipe é responsável por levar correspondência a mais de mil moradores, número que já foi maior. No começo, o projeto atendia quase 3.000 pessoas.

Silva explica que, além da pandemia, a queda aconteceu porque usuários do serviço se mudaram da favela. Segundo ele, isso teve início a partir da pacificação —processo que começou em 2008 no qual o poder público tentou recuperar regiões ocupadas por traficantes ou milicianos.

Favelas precisaram criar soluções próprias para driblar problemas na hora de receber correspondências - Tércio Teixeira/Folhapress

Ele diz que, depois que a favela foi pacificada, a demanda por imóveis aumentou. "Pessoas que nasceram no Vidigal foram com o tempo não tendo mais a possibilidade de pagar o aluguel porque foi ficando caro."

Com vista privilegiada para o mar, a comunidade é uma das mais cobiçadas por cariocas e turistas. "Hoje em dia, a nossa clientela está aumentando [de novo] aos poucos, principalmente porque passamos a fazer entrega em outras ruas."

Fundado há 14 anos, o projeto do Vidigal enfrentou percalços no começo. Silva conta que existem ruas onde as casas têm a mesma numeração e que muitos moradores são conhecidos pelo apelido, e não pelo nome próprio.

Para driblar esses problemas, eles fizeram uma espécie de censo da comunidade, passando de porta em porta para colher informações e mapear a favela. Hoje, a iniciativa é vista como uma referência. ​

"O correio comunitário é importante porque ajuda os moradores e ainda produz renda", diz ele. "E a nossa intenção é ensinar o roteiro das entregas para os jovens e continuar gerando emprego."

Iniciativas como essas mostram a potência criativa das favelas e desafiam a crença de que esses espaços são o território da carência. É isso o que defende Preto Zezé, presidente da Cufa (Central Única das Favelas).

"As favelas deixaram de ser o lugar que só remete a carência, tragédia e dificuldade. Elas passaram a apresentar um conjunto de soluções importantes para a sociedade."

A Cufa também tem uma iniciativa que busca garantir o direito à comunicação nas favelas. Trata-se do projeto Recomeçar, que emprega ex-presidiários para fazer entrega de produtos nas comunidades do Rio.

Zezé diz que ser privado de um serviço gera impactos na autoestima de quem mora na periferia. "Isso tem como base o preconceito de que as favelas são lugares violentos e sinistros, algo que priva os moradores do acesso a um serviço público", diz ele. "As pessoas são discriminadas por causa de seu CEP."

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