Descrição de chapéu Rio de Janeiro chuva

Motoqueiros formam exército para chegar aos morros mais atingidos em Petrópolis

Voluntários levam alimentos, roupas e produtos de higiene a locais sem acesso de carros

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Júlia Barbon Eduardo Anizelli Orlando de Souza
Petrópolis (RJ)

O som dos motores e escapamentos se junta ao das sirenes nas ruas de Petrópolis, no Rio de Janeiro. São as centenas de motoqueiros que formaram uma espécie de exército, levando e trazendo doações aos lugares que carros e caminhões não alcançam.

Percebendo que esse seria o único jeito de ultrapassar as barreiras de terra e o asfalto coberto de lama, quem tinha moto vestiu capacete e bota e foi ajudar. Uma chuva histórica arrasou a cidade imperial na última terça (15), deixando ao menos 181 mortos e 104 desaparecidos.

Muitos usam a experiência que já tinham como motoboys, alguns emprestam os veículos que têm parados na garagem aos amigos, e outros organizam pontos de apoio para além daqueles montados pela prefeitura ou por igrejas, que abrigam mais de 800 pessoas.

Motoqueiros com mantimentos sobrem a rua Sargento Boening, próximo ao bairro Chácara Flora, em Petrópolis, região serrana do Rio de Janeiro
Motoqueiros com mantimentos sobem a rua Sargento Boening, próximo ao bairro Chácara Flora, em Petrópolis, região serrana do Rio de Janeiro - Eduardo Anizelli/Folhapress

"É um trabalho muito difícil porque a mochila fica muito pesada, é muito estressante. Mas muito gratificante também. Você chega e as pessoas agradecem e falam: vocês são heróis. Na sexta, um rapaz me abraçou e chorou", diz o motoboy Igor Gomes, 28.

Foi levar remédios controlados e buscar soro na paróquia Santo Antônio, onde o fluxo de motoqueiros foi tão grande nos primeiros dias que o padre resolveu criar um cadastro com nome e placa, para evitar os poucos que se aproveitavam para pegar as doações e depois vender. A lista já tem cerca de 50.

Juntam-se também aqueles que já costumavam fazer trilhas ou motocross como hobby, com máquinas ainda mais preparadas para subir morros e conhecimento dos atalhos locais, e os que vieram de outros municípios, como Rio de Janeiro, Nova Friburgo e Teresópolis.

Luís Rodrigues de Oliveira, 44, é um deles. Trabalhando com transporte na capital fluminense há anos, formou um comboio com cerca de 40 motos e 10 carros que percorreu os 72 quilômetros entre as cidades para levar água, alimento e roupas no último sábado (19).

"Muitos clientes meus doaram", diz ele. "Agora estamos para ir de novo, as pessoas estão precisando mais de roupa íntima, calcinha, cueca, sutiã, absorvente e material de limpeza. Estou vendo se conseguimos comprar para levar", diz ele.

O gerente comercial João Luis de Oliveira, 44, estacionava a sua moto vermelha e branca estampada com seu nome numa esquina de Alto da Serra nesta segunda (21). "Todo mundo da trilha está ajudando, ontem eram uns 15. Vamos compartilhando a localização no WhatsApp", conta.

O gerente comercial João Luis de Oliveira, 44, é um dos motoqueiros que se mobilizaram para ajudar no transporte de cestas básicas, água e roupas em lugares de difícil acesso em Petrópolis
O gerente comercial João Luis de Oliveira, 44, é um dos motoqueiros que se mobilizaram para ajudar no transporte de cestas básicas, água e roupas em lugares de difícil acesso em Petrópolis - Eduardo Anizelli/Folhapress

A moto pesa 105 kg –65 kg a menos do que a sua convencional, usada pelo colega ao lado— e tem pneus especiais. Um deles chegou a furar em um dos trajetos, mas deu tempo de voltar à cidade e colar. "Essa sobe em qualquer lugar", diz.

Quem não tem dinheiro também tem contado com a ajuda dos borracheiros da cidade, que abrem uma exceção para os voluntários. "Tem que ajudar, não tem jeito. Não sabemos quando vamos precisar também, né?", diz José Erivelto, 63, o "Doidinho" da Doidinho Pneus e Rodas.

As cerca de cinco motos que apareciam diariamente por ali subiram para 20 depois da tragédia. Normalmente, precisam colar pneu furado e esticar a correia para limpar a lama e passar óleo. "Está fora do comum o número que tem vindo aqui", espanta-se Antônio Carvalho, 43.

Eles também contam com ajuda para encher o tanque, que normalmente sai por cerca de R$ 90 ou R$ 100. Alguns postos fornecem R$ 15 de combustível, por exemplo. Um estudante de 17 anos e seus amigos conseguiram uma doação inusitada.

O jovem, que ainda não tem habilitação, mas já pilota, diz que um colega seu que joga videogame contou para um adversário chinês o que havia acontecido na cidade. Direto da China, o amigo virtual mandou uma transferência de R$ 300 para abastecer as motos.

Ele começa de manhã, umas 10h, e só para à noite. Consegue colocar 20 quentinhas por viagem dentro da mochila, em pilhas de cinco. Só pretende parar quando as aulas no primeiro ano do ensino médio voltarem, depois do Carnaval, porque foram interrompidas pela tragédia.

A alguns quilômetros dali, em Alto da Serra, o advogado Daniel Vasconcelos, 28, transformou seu escritório numa base de arrecadação, distribuição e apoio para os motoqueiros, com banheiro, lanche, cafezinho, guaraná Guaravita e água gelada.

No dia da chuva, quando ainda não havia bombeiros equipados, ele conta que tirou uma barreira e amarrou uma corda para facilitar o acesso de uma rua por cima de um carro. Colocaram tábua, portão e tampa de caixa d’água para os moradores conseguirem passar.

Depois dormiu duas horas e pensou em como poderia ajudar, percebendo que as motos seriam a melhor opção para circular. Chegou a ralar a perna toda ao cair da garupa de um amigo, que derrapou na lama enquanto carregava mantas e mochilas.

"Aqui é o olho do furação", diz ele, numa ladeira que fica entre alguns dos lugares com mais deslizamentos, como o Morro da Oficina, Sargento Boening e Vila Felipe, dando play no áudio de uma mulher que agradecia a entrega de fraldas e leite porque não podia sair de casa com duas crianças e a sogra com deficiência visual.

Nesta segunda, com muitas passagens sendo liberadas para o acesso a carros, o fluxo de motoqueiros já diminuiu um pouco. As doações também já se acumulam demais em alguns pontos, e os voluntários tentam distribuir para áreas com mais necessidade.

No estoque abarrotado de garrafas d’água e quilos de arroz numa casa na Chácara Flora, o empresário e voluntário Robson Luis Samagaio, 47, afirma que algumas comidas começam a estragar. "Tem gente para quem eu dei sete cestas básicas", conta.

Ele agradece que tantos motoqueiros tenham vindo ajudar. "Nos dias normais, a gente costuma se irritar, reclamar deles no trânsito, mas quando acontece alguma coisa assim a humanidade prevalece", diz.

Doações mais necessárias, segundo a prefeitura

  • Cesta básica já montada (25kg)
  • Kit de higiene pessoal (desodorante, absorvente, sabonete etc.)
  • Kit de limpeza (desinfetante, saco de lixo, luvas descartáveis, detergente, esponja etc.)
  • Kit para crianças (biscoitos, guloseimas, brinquedos, jogos infantis etc.)
  • Fraldas geriátricas
  • Toalhas novas
  • Roupas de cama e travesseiros novos
  • Roupa íntima nova (infantil, feminina e masculina)
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