Descrição de chapéu Rio de Janeiro Folhajus

Três de cada quatro escolas públicas do Rio foram afetadas por tiroteio

Estudo estima impacto de operações policiais de 2019 no aprendizado e renda futura de alunos da rede municipal

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São Paulo

No dia 19 de março de 2019, o diretor de uma escola municipal da zona norte do Rio de Janeiro relatou para a Secretaria de Educação: "Presença de blindados nas proximidades da unidade, tiroteio intenso e ouvimos, também, muitas bombas. Sem condições para funcionamento".

O caso está longe de ser uma exceção. Naquele ano, a plataforma Fogo Cruzado, que registra a ocorrência de tiroteios na cidade, identificou nada menos que 1.154 escolas da rede de ensino municipal do Rio afetadas por ao menos uma troca de tiros com a presença de policiais.

O número corresponde a 74% das escolas da rede pública cariocas, com impacto estimado em mais de 450 mil estudantes.

É como se, a cada dia do ano letivo, 6 escolas da cidade tivessem suas aulas prejudicadas por tiroteios com a presença de agentes do Estado em seu entorno.

Cartum de André Dahmer ilustra pesquisa sobre impacto de rotina de tiroteios perto de escolas municipais do Rio de Janeiro, "Tiros no Futuro: O impacto da guerra às drogas na educação municipal do Rio de Janeiro", do CESeC
Cartum de André Dahmer ilustra pesquisa sobre impacto de rotina de tiroteios perto de escolas municipais do Rio de Janeiro, "Tiros no Futuro: O impacto da guerra às drogas na educação municipal do Rio de Janeiro", do CESeC - Divulgação

Entre elas, 57% tiveram até 10 episódios desses tiroteios em 2019, 11% sofreram mais de 30 casos, e quatro escolas concentraram 95 trocas de tiros com a presença de forças de segurança, boa parte deles ligados a operações policiais de repressão ao tráfico de drogas e de armas. Estudos já apontaram que grande parte dessas operações é de baixa eficácia, ou seja, traz pouco ou nenhum resultado.

Naquele ano, 61% das operações policiais na cidade do Rio ocorreram durante o dia. Metade delas se deu pela manhã.

"A presença violenta da polícia nas proximidades das escolas sempre me chamou a atenção e desafiou minha curiosidade: será que a gente pode medir o impacto disso?", afirma a socióloga Julita Lemgruber, ex-ouvidora da polícia fluminense.

"Minha percepção, como observadora dessa realidade há muitos anos, é de que deveria haver algum impacto. Eu só não imaginava que fosse tão grande", admite a coordenadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), que lança agora o estudo "Tiros no Futuro: Impactos da guerra às drogas na rede municipal de ensino do Rio de Janeiro", o segundo da série "Drogas: quanto custa proibir".

A pesquisa aponta que as consequências dessa exposição à violência armada envolvendo o Estado adentram os espaços educacionais e trazem repercussões que podem se estender por toda a vida desses alunos.

A discussão ganha força depois que o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, na semana passada, pela obrigatoriedade de um plano de redução da letalidade nas operações policiais no Rio de Janeiro a partir da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635, conhecida como ADPF das Favelas.

"Tiros no Futuro", lançada nesta segunda (7), mostra que conflitos ocorridos durante o ano letivo estão associados a uma diminuição do desempenho acadêmico dos estudantes e uma maior evasão escolar, com impacto na renda futura dessas crianças e adolescentes. Isso quando não trazem a repercussão mais dramática: a morte de crianças em comunidades alvo de operações, atingidas em uniformes escolares ou até mesmo dentro da escola.

Foi o caso de Marcus Vinícius da Silva, 14, baleado por um blindado da PM a caminho da escola no Complexo da Maré, em 2018. Foi também o caso de Maria Eduarda, 13, morta dentro da escola por tiro de fuzil disparado por um policial durante uma operação na Pavuna, zona norte do Rio, em 2017.

E mais: quanto maior a proporção de alunos negros, mais expostas à violência armada com a presença de agentes do Estado estão as escolas municipais do Rio.

"Isso só é possível numa sociedade marcada pelo racismo como é a sociedade brasileira. Nada pode justificar que crianças sejam impedidas de apreender o conteúdo do que lhes é ensinado porque há tiroteios na redondeza", afirma Julita.

O estudo comparou o desempenho no Prova Brasil de alunos de 30 escolas afetadas por ao menos seis tiroteios em operações policiais em 2019 com o de estudantes de escolas não expostas à violência armada, mas com o mesmo perfil socioeconômico. Prova Brasil é o exame aplicado pelo governo federal para medir o desempenho dos estudantes, que integra o Saeb (Sistema de Avaliação da Educação Básica) e é usado para calcular o Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica).

Na comparação, o estudo detectou diminuição no desempenho em língua portuguesa e, principalmente, em matemática —algo que se intensifica à medida que aumenta a frequência e a proximidade dos eventos.

A associação entre operações policiais e a proficiência dos alunos do 5º ano do ensino fundamental apontou que os estudantes de escolas com entornos mais violentos (com seis ou mais operações policiais em 2019) tiveram uma redução média de 7,2 pontos para língua portuguesa e de 9,2 pontos para matemática.

Os pesquisadores calcularam qual foi o impacto dessa redução de pontos no aprendizado esperado para alunos do 5º ano e apontaram que, em língua portuguesa, alunos de escolas municipais cariocas com entornos violentos tiveram redução de 64% no aprendizado esperado enquanto, em matemática, os alunos até mesmo perderam o aprendizado.

Cartum de André Dahmer ilustra pesquisa do CESeC "Tiros no Futuro: O impacto da guerra às drogas na educação municipal do Rio de Janeiro"
Cartum de André Dahmer ilustra pesquisa do CESeC "Tiros no Futuro: O impacto da guerra às drogas na educação municipal do Rio de Janeiro" - Divulgação

"Essa é uma redução estatisticamente significativa e pedagogicamente muito relevante", afirma Rachel Machado, socióloga e pesquisadora do CESeC. "Em matemática, a perda é ainda mais impressionante: todo o aprendizado esperado nessa etapa de ensino fica prejudicado em função da exposição a operações policiais no entorno da escola."

O cálculo foi feito também para reprovações no 5º ano e, enquanto escolas sem entornos violentos tiveram uma taxa de reprovação de 3,1%, as instituições municipais afetadas por operações policiais tiveram taxa de 4,9%.

Rachel explica que essa redução de aprendizado e a maior reprovação têm impacto na renda futura desses estudantes. Segundo ela, existe uma estimativa que atribui 0,5% na renda para cada ponto perdido no Saeb. "Considerando que a média do aprendizado perdido é 8,2 pontos, tem-se uma redução de 4% na renda futura."

A partir de um modelo econométrico, o economista Sergei Soares, ex-presidente do Ipea, calculou os rendimentos futuros de alunos que estavam no 5º ano dessas escolas em 2019. Ponderadas as diferentes faixas de renda compatíveis com diferentes anos de estudo, chegou-se a um valor médio de R$ 614 mil reais de ganhos ao longo do ciclo produtivo desses estudantes, considerados aqueles obtidos entre 16 e 65 anos de idade.

Aplicado o percentual de 4% de perda por conta das reduções no aprendizado esperado e chegou-se a uma perda nominal de R$ 24.698 na renda futura desses adolescentes.

"O Estado emprega parte do seu orçamento para manter essas escolas ao mesmo tempo em que manda a polícia atirar em cima", critica Julita. "Recursos estão sendo empregados para essas crianças terem um futuro porque a educação está intimamente ligada à mobilidade social. Portanto essa política é esquizofrênica".

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