Iniciativa adaptada de zonas de guerra reduz em 26% interrupção em serviço de saúde

Programa da Cruz Vermelha Internacional foi implantado em sete cidades brasileiras

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São Paulo

A guerra que domina o noticiário atual ocorre a milhares de quilômetros do Brasil, na fronteira da Rússia com Ucrânia. Mas a violência armada cotidiana dos brasileiros, mesmo sem conflito declarado, levou sete municípios do país a adotar um método de prevenção e mitigação dos efeitos de tiroteios no atendimento à população.

Só em 2021, mais de mil profissionais das áreas de educação e saúde que atuam em comunidades vulneráveis à violência armada em Vila Velha (ES), Fortaleza (CE) e Porto Alegre (RS) passaram por capacitação do programa Acesso Mais Seguro (AMS) para Serviços Públicos Essenciais do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV). Juntas, as unidades de atuação desses profissionais atendem a mais de 42 mil pessoas.

O resultado, segundo o balanço humanitário do CICV, lançado nesta quinta-feira (24), foi a redução de 26% nas horas de fechamento de unidades de saúde de Duque de Caxias (RJ) e de Fortaleza (CE) em decorrência de episódios de violência armada no primeiro semestre de 2021 em relação ao mesmo período do ano anterior.

Exemplos contrários não faltam. Há pouco mais de um mês, durante uma operação policial na Vila Cruzeiro, na zona norte do Rio, três clínicas da família e 17 escolas públicas tiveram de fechar durante a troca de tiros que deixou oito mortos. No dia, 5.740 alunos da região ficaram sem ir à aula.

Alunos de escola municipal se jogam no chão para se proteger dos tiros em Manguinhos, Zona Norte do Rio
Alunos de escola municipal se jogam no chão para se proteger dos tiros em Manguinhos, zona norte do Rio - Onde Tem Tiro

Pesquisa do Centro de Estudos em Segurança e Cidadania (CESeC) apontou que, só em 2019, 74% das escolas da rede pública municipal do Rio de Janeiro foram impactadas por trocas de tiros com a presença de agentes do Estado.

"Existem consequências da violência armada que são, muitas vezes, invisíveis", avalia Alexandre Formisano, chefe da delegação regional do CICV para Argentina, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai.

"E, embora tenhamos uma situação aqui que não é em nada comparável à da guerra na Ucrânia, algumas consequências são semelhantes, como a dificuldade no acesso a serviços essenciais, o desaparecimento de pessoas e seu deslocamento forçado", explica ele.

O CICV é uma organização humanitária, que se coloca como independente e neutra, e atua historicamente na proteção e assistência às vítimas de guerra e de outros tipos de conflito e de violência.

O programa AMS, como explica sua coordenadora, Karen Cerqueira, "é uma adaptação dos protocolos de segurança desenvolvidos pelo CICV para profissionais e voluntários da Cruz Vermelha que atuam em situações de conflitos armados para a realidade das comunidades atendidas" em parcerias com secretarias municipais de saúde e educação.

"O resultado são instituições mais preparadas para enfrentarem uma situação de crise", afirma ela sobre o programa, que também está presente em Duque de Caxias (RJ), Rio de Janeiro (RJ), São Paulo (SP) e Florianópolis (SC).

Equipe do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) e da Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro visitam a comunidade Nova Holanda, no Complexo da Maré, para compreender o processo de implementação do programa Acesso Mais Seguro - AF Rodrigues/CICV

"Vivemos uma crise de segurança na cidade, com disputas de territórios por facções. Temos relatos de moradores que não conseguem ir ao posto de saúde da sua região porque, para isso, teriam de cruzar um território dominado por uma facção inimiga da facção de onde eles moram", ilustra Joana Nogueira, coordenadora executiva da Assessoria de Assuntos Institucionais da Prefeitura de Fortaleza (CE).

Segundo ela, a implantação do programa AMS aumentou a sensação de segurança de quem trabalha em áreas mais vulneráveis da cidade, ajudou a mensurar o impacto da violência na oferta de serviços públicos essenciais, melhorou a comunicação entre unidades de atendimento ao público e deve se tornar uma política pública da capital cearense.

O AMS auxilia na criação de protocolos de gestão de riscos por meio da identificação e avaliação de riscos e adoção de medidas que busquem limitar os impactos de situações de violência armada em comunidades vulneráveis.

Segundo Formisano, muitos gestores costumam ficar sem saber o que fazer diante de uma situação de violência armada. "A solução sempre foi fechar e aguardar, o que prejudica o acesso aos serviços, não só porque eles ficam inacessíveis à população nestes momentos mas porque isso enfraquece a relação de confiança que as pessoas precisam ter nesses equipamentos", afirma.

O AMS tem hoje um aplicativo que coleta informações e fica vinculado a um sistema de notificação que identifica os sinais de risco do território em tempo real, feito por profissionais que conhecem essa dinâmica e estão no local. Identificados os riscos, o aplicativo sugere medidas para a mitigação de problemas, que podem incluir o fechamento total ou parcial da unidade, o cancelamento de atividades externas ou internas e até mesmo a evacuação do terreno.

Para Formisano, esses serviços essenciais precisam ser resilientes e, por isso, o programa foca a identificação de sinais de violência armada, a análise de contexto e protocolos de comportamento seguro, de técnicas de abrigo e de formas de comunicação com as pessoas que estiverem no local.

"A partir disso, são construídos planos de contingência baseados em cada realidade e treinamentos", explica. "A violência armada é crônica e endêmica, portanto, esse trabalho procura criar capacidades, treinando pessoas das secretarias municipais que possam multiplicar esse conhecimento, numa resposta sustentável."

Foi o que aconteceu com a enfermeira Érica Nascimento, 40, que trabalha no programa Saúde da Família em Duque de Caxias, na baixada fluminense, e foi treinada por uma médica do posto de saúde em que fica alocada.

Érica conta que a violência armada passou a fazer parte da sua vida quando ela começou a atuar no sistema público de saúde, 22 anos atrás. Ela já teve de se abrigar de tiroteios na casa de pacientes aos quais fazia uma visita domiciliar.

"A gente só pensa no que fazer em caso de tiroteio na hora em que ele está acontecendo", afirma. "E o AMS fez a gente refletir sobre o que fazer quando ocorrer um episódio de violência. Identificamos uma das salas do posto de saúde que não era voltada para a rua e, agora, sabemos que é lá que temos de nos abrigar caso ocorra troca de tiros. Agora sabemos o que fazer."

Segundo Karen, coordenadora do AMS, "se uma unidade de saúde ficar fechada o dia inteiro, o impacto para a comunidade que ela atende é muito grande".

"Por isso, é importante que os profissionais consigam mensurar o risco real a que estão expostos, além de adotarem medidas adequadas de prevenção àquele risco. O objetivo do programa é não expor os profissionais e usuários de serviços essenciais à população, mas também não limitar o acesso à atividade."

Com o aumento da demanda por capacitação para o programa AMS, o comitê desenvolveu uma plataforma de educação à distância para que o conhecimento sobre prevenção e mitigação de efeitos da violência armada possa chegar onde sua equipe, mais restrita, ainda não chega.

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