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Apesar de scanners, revista íntima ainda é praxe em prisões

Cerca de 78% dos familiares de presos foram submetidos a revista vexatória em 2021

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Laís Modelli
DW

"Eu já vi mulher defecar no chão durante a revista de tanta força que a agente penitenciária mandava a coitada fazer", conta Fernanda* –que teve o nome alterado por razões de segurança– sobre um dos episódios que vivenciou nas visitas que fez ao ex-marido por 15 anos seguidos em quatro unidades prisionais da Bahia até o ano passado.

"Eu passei por revista vexatória em todas as penitenciárias", acrescenta Fernanda, afirmando que era comum ver crianças e bebês também terem seus corpos revistados pelos agentes penitenciários. "Tiravam toda a roupinha, até a fralda".

A experiência da Fernanda não é uma exceção. Cerca de 78% dos familiares de presos foram submetidos à revista vexatória como condição para visitar um parente em penitenciárias em todo o Brasil em 2021. Mais de 37% deles afirmaram que já foram obrigados a se agachar sobre um espelho e abrir com as mãos as cavidades das partes íntimas.

Interior da Fundação Casa - Ronny Santos - 6.jun.2018/Folhapress

O dado é do relatório "Revista vexatória: uma prática constante", realizado por diversas organizações da sociedade civil e publicado nesta quinta-feira (10). A história de Fernanda não integra os inúmeros relatos que compõem a pesquisa, mas, segundo a organizadora do estudo, Sofia Fromer, pesquisadora do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC), reflete a realidade dos visitantes que frequentam o sistema prisional.

"Essas pessoas não cometeram nenhum crime, apenas estão visitando um familiar que está preso, o que é um direito. Além de buscarem manter os laços familiares, elas também cumprem funções que o Estado deveria cumprir, como o de levar o 'jumbo' [kit com produtos de higiene pessoal] ao preso", diz Fromer.

A pesquisadora afirma que, de acordo com o levantamento, "esse ritual perverso de humilhações no momento da revista" colaborou para que 34,5% dos familiares deixassem de visitar o parente encarcerado, e 66,6% deles não levassem mais seus filhos para verem o pai, a mãe, o avô, etc.

Scanner corporal

Depois de inúmeras humilhações, Fernanda reuniu familiares de presos que passavam pela mesma situação e fez uma denúncia formal no Ministério Público da Bahia em 2012. "Sempre entrávamos em duas para fazer a revista, o que era um constrangimento ficar nua na frente de uma desconhecida. Quando acontecia de alguma estar menstruada, sujava toda a sala de sangue. A gente olhava com medo e pensava que poderíamos passar por aquilo na próxima visita", lembra.

Fernanda protocolou denúncias de revista vexatória por dois anos seguidos no MP. "Fiquei marcada. As agentes chegavam a tirar foto das carteiras de visitante". Em 2014, a baiana se tornou militante contra essa prática e o encarceramento em massa. Ela lembra que a revista íntima deveria ter acabado em 2017, quando as unidades prisionais adotaram o aparelho de scanner corporal.

"Mas as revistas vexatórias continuaram ocorrendo em toda a Bahia", afirma. "Esse ano, as revistas voltaram com tudo, estão cada vez mais bravas", diz Fernanda.

De acordo com o relatório, a revista vexatória ocorre em unidades prisionais das cinco regiões do Brasil, mas é pior no Centro-Oeste, onde 100% dos entrevistados afirmaram que foram submetidos à prática no ano passado; no Sul, com 90% dos entrevistados; e no Norte, com 81% dos relatos.

"Acreditávamos que o scanner corporal resolveria o problema das revistas, mas vemos que, a maneira como foram implementados se tornaram só mais uma barreira para a entrada do visitante", diz Fromer.

Os aparelhos não são operados por técnicos de radiologia, mas pelos próprios agentes penitenciários. "É comum os visitantes passarem pelo scanner e, em seguida, sofrerem a revista íntima, porque o agente não conseguiu ler a imagem", explica Fromer.

O defensor público do estado de São Paulo, Mateus Moro, também afirma que a prática continua ocorrendo nos presídios paulistas ora por incapacidade dos agentes penitenciários em operarem os scanners, ora por causa da própria prática da revista vexatória, vista como regra no meio prisional.

"Se você precisa passar por um exame de scanner, você vai ao hospital e um técnico em radiologia que estudou para isso fará o exame. Na prisão, quem opera o scanner é o próprio agente penitenciário, que passou por um curso de 10 horas sobre o equipamento. Eles veem gases em um revistado e dizem que são um corpo estranho no estômago", diz Moro.

A DW Brasil procurou as secretarias de administração penitenciária da Bahia, que não retornou o contato até o fechamento da reportagem, e a de São Paulo, que afirmou que as revistas vexatórias não ocorrem mais no estado e que as penitenciárias "contam com aparelhos de raio-X e scanners corporais que impedem o contato de funcionários com visitantes".

"Todo o corpo funcional que opera os escâneres corporais recebeu treinamento específico que abrange conhecimentos básicos de proteção radiológica e, por tal motivo, estão capacitados para o manuseio dos equipamentos, conforme orientação da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN)", acrescentou a SAP de São Paulo.

Apesar de o Brasil não ter uma lei federal que proíba expressamente a revista vexatória, o defensor público explica que o Estado não pode ter uma política de revista de corpos indiscriminada. Além disso, diversos estados já têm leis regionais que proíbem a prática. "As pessoas não podem ser revistadas indiscriminadamente, sem nenhuma suspeita, pelo simples fato de serem pobres ou negras ou familiares de um preso", ressalta.

"Há uma presunção do Estado de que todo familiar de um preso é um criminoso em potencial. A pena não pode passar do condenado para qualquer outra pessoa", diz o defensor público.

Grávida, menstruada, criança

De acordo com a pesquisa, apesar da revista vexatória ocorrer principalmente entre mulheres (97,7% dos entrevistados que sofreram a prática são mulheres), ela ocorre de maneira sistemática entre negros e negras: enquanto 70% dos familiares negros foram expostos a essa violação, 72,1% dos familiares brancos não foram expostos.

"Assim como na vida aqui fora, os ciclos de cuidados nos presídios são feitos por mulheres. Elas e as crianças são a maioria entre os visitantes. O número de visitas nas unidades prisionais masculinas é muito maior do que nas femininas. Quando a mulher vai presa, não é regra um familiar prestar o apoio", diz Fromer.

Pelo menos 57 homens do total de 471 entrevistados afirmaram que foram obrigados a ficar totalmente nu no momento da revista. Idosos, grávidas, crianças e bebês também estão entre os que foram submetidos à revista vexatória. "Certa vez, a agente me pediu pra tirar a prótese dentária, o que me causou grande constrangimento", diz o relato de uma senhora de São Paulo.

Assim como na vida aqui fora, os ciclos de cuidados nos presídios são feitos por mulheres. Elas e as crianças são a maioria entre os visitantes

Sofia Fromer

pesquisadora do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC)

Além disso, mais da metade dos familiares, 56%, afirmaram que ao passar pela revista sofrem violências verbal ou psicológica. "Foi muito humilhante. O agente me alisou com malícia ao me revistar e disse que eu merecia passar por isso por ter um filho malandro preso", diz o relato de uma paulista.

"A revista vexatória pode ser comparada a um estupro institucional", aponta o defensor público Moro.

Impedidos de visitar

Nem todos que passam pela revista, contudo, são liberados a fazerem a visita. "Ouvimos relatos de que o ritual da revista e o resultado depende, muitas vezes, do humor do agente penitenciário, não há um padrão", diz Fromer.

A pesquisa também mostrou que 8% dos familiares se recusaram a serem expostos pela revista vexatória; mais de 21% deles sofreram alguma represália, como ser impedido de visitar o parente.

"Não fazer a revista pode gerar represálias inclusive para o parente dentro da prisão. É comum ouvirmos desses familiares que existe um cuidado de 'não levarem problemas' para o familiar na prisão. Também existe o medo de ficarem 'marcados' pelos agentes e não serem liberados para entrar nas próximas visitas."

O defensor público afirma que, pelo menos no estado de São Paulo, também é comum visitantes que são vistos como suspeitos serem levados para hospitais públicos sem o seu consentimento para a realização da revista íntima. Muitas vezes, neste caso, precisam ficar horas esperando.

"A espera é tão longa que já não dá mais para o familiar fazer a visita, o horário já acabou", descreve Moro. "Essa pessoa veio de longe, gastou o dinheiro que muitas vezes não tinha para comprar uma passagem de ônibus, faltou no serviço etc. Não é só a impossibilidade de ver o parente", diz o defensor, afirmando que a prática é mais que uma violação moral.

Dados da Rede de Justiça Criminal mostram que, apesar de constante, os visitantes flagrados portando coisas ilícitas representam apenas 1% dos revistados.

Em nota, o Departamento Penitenciário Nacional (Depen) afirmou que, desde 2021, treina servidores estaduais para operarem equipamentos de segurança, como o scanner corporal, mas que "cumpre ressaltar que não há vedação à realização da revista íntima, quando necessária, a critério do agente prisional / policial penal, com vistas à garantia da segurança".

O relatório "Revista vexatória: uma prática constante" foi organizado pelas organizações da sociedade civil Conectas Direitos Humanos, Rede de Justiça Criminal, Instituto Terra, Trabalho e Cidadania, Instituto de Defesa do Direito de Defesa, Núcleo Especializado de Situação Carcerária da Defensoria Pública do Estado de São Paulo e Pastoral Carcerária Nacional.

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