Descrição de chapéu Rio de Janeiro Alalaô

Em Duque de Caxias (RJ), desfile campeão sobre Exu vira divisor de águas no combate à intolerância

Seguidores do candomblé esperam que vitória da Grande Rio no Carnaval ajude a desmistificar preconceitos sobre o orixá

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Rio de Janeiro

O pai de santo Celinho de Omolu, 57, notava que as pessoas falavam o nome de Exu com temor na voz, como se o orixá mensageiro fosse um tabu ou uma ameaça. Esse cenário, diz ele, começou a mudar na madrugada do último domingo (24), quando o Acadêmicos do Grande Rio entrou na Marquês de Sapucaí.

Durante o desfile, a agremiação exaltou o nome da divindade e conquistou o primeiro título de sua história. Segundo Pai Celinho, o medo começou a dar lugar ao respeito.

Pai de santo usa bata e colares. No fundo, há uma grande parede azul
Pai Celinho de Omolu, líder religioso que tem um dos terreiros mais conhecidos de Duque de Caxias (RJ) - Eduardo Anizelli/Folhapress

"Os leigos se sentiam mais confortáveis para falar de Exu. Antes do desfile, eles tinham receio, como se questionassem: ‘Será que eu estou reverenciando o diabo?’", afirma ele, que considera o desfile um divisor de águas.​ "Agora, na TV, no Sambódromo e na comunidade, as pessoas falam dele com a boca cheia de orgulho."

O pai de santo mora em Duque de Caxias, município da Baixada Fluminense onde a Grande Rio nasceu em 1988. Para a liderança religiosa, o enredo foi um presente à cidade e às religiões de matriz africana.

"O desfile não poderia ter tido um resultado diferente. Exu dominou aquele momento com toda sua magia, amor e encantamento. O desfile foi de arrepiar", diz ele, acrescentando que a sociedade precisava desse esclarecimento sobre a divindade.

Ela frequentemente é associada à figura do diabo do cristianismo, associação que muitos usam para depreciar as religiões de matriz africana e as pessoas que cultuam o orixá.

"Exu foi demonizado e incompreendido. O desfile desmistificou essa visão que muitas pessoas têm sobre ele", diz o religioso. "Exu na verdade é o mensageiro, é o portador das informações do plano astral."

Desconstruir preconceitos foi justamente um dos objetivos da Grande Rio. "O enredo e a vitória da escola carregam muitas camadas de importância. A primeira é desconstruir a ideia de que Exu é o diabo cristão", diz o historiador e antropólogo Vinícius Natal, 35, que trabalhou na pesquisa do enredo.

Pai de santo está sentado em uma grande cadeira. Ao lado dele, há outras três pessoas.
Pai Celinho de Omolu considera que o desfile da Grande Rio foi um divisor de águas para as religiões de matriz africana - Eduardo Anizelli/Folhapress

O pesquisador diz, porém, que o enredo sofreu resistência de setores de fora da escola. "Alguns grupos conservadores se colocam contra, porque não entendem o enredo. Eles colocam Exu na velha associação com o diabo. Mas essas visões só demonstram a importância do enredo e de falar de Exu em todos os espaços."

Se fora da Grande Rio houve resistência, dentro da agremiação a homenagem foi muito bem recebida. Vinícius explica que o enredo foi uma demanda da própria escola e ganhou força após o Carnaval de 2020.

À época, a tricolor foi vice-campeã com enredo sobre Joãozinho da Gomeia, o mais célebre pai de santo de Caxias. Já na apuração, a equipe de criação da escola, capitaneada pelos carnavalescos Leonardo Bora e Gabriel Haddad, bateram o martelo e decidiram celebrar Exu no Carnaval seguinte.

"A gente começou logo depois o projeto de pesquisa, que se deu não só por meio de livros, mas foi muito através de entrevistas a componentes da escola, das comunidades de axé e do movimento negro", explica Vinícius.

"Trazer Exu no desfile é dar uma resposta à intolerância e dizer que é preciso respeitar todas as religiões. A vitória coroa um debate sobre intolerância que a escola está pautando na cidade, no estado e no Brasil."

Mãe Conceição d'Lissá, 61, conhece de perto a violência motivada pelo preconceito religioso em Caxias. Ela diz ter sofrido cinco ataques; em um deles, foi alvo de tiros quando estava em casa.

O último episódio aconteceu em 2014, quando criminosos atearam fogo no barração onde está localizado seu terreiro. Em razão dos estragos, ela foi obrigada a ficar com o espaço fechado durante um ano.

"É como se a gente deixasse de ser cidadão, de ser uma pessoa com direitos. É uma impunidade que faz com que você se sinta muito impotente", diz a religiosa, que teve estresse pós-traumático por causa dos ataques.

O município em que a Grande Rio nasceu de fato coleciona casos de intolerância. Em 2021, a CPI da Intolerância Religiosa, feita na Assembleia Legislativa do estado, recebeu 37 casos vindos da Baixada, sendo que 19 deles (51%) ocorreram em Duque de Caxias.

Ainda segundo dados obtidos pela CPI, a cidade tem cerca de 300 terreiros, a maior concentração dentre os 13 municípios da região.

Já a Prefeitura de Caxias diz que recebeu no último ano 30 denúncias sobre intolerância religiosa. Em nota, o poder municipal afirma que combate todo tipo de preconceito e que oferece assistência social, jurídica e psicológica a quem sofre atos de violência religiosa. Além disso, diz levar às escolas palestras com reflexões e esclarecimentos sobre racismo, homofobia e intolerância religiosa.

Apesar do preconceito, Mãe Conceição diz que o candomblé é a sua vida e que não segurou a emoção quando viu Exu homenageado no Sambódromo.

"O Carnaval e o samba foram o nosso grito de luta por liberdade e por direitos. Foi um grito de resistência e reexistência. Exu foi para a avenida e todo mundo teve que vê-lo do jeito que ele é, não do jeito que querem que ele seja", afirma ela. "Que seja um divisor de águas para que a nossa cultura e religiosidade sejam respeitadas."

Uma das principais lideranças religiosas do Rio, o babalaô Ivanir dos Santos diz que o título da Grande Rio é uma conquista coletiva.

"É uma vitória para o Brasil, não só para as religiões de matriz africana. É a afirmação da diversidade e do combate ao ódio", diz ele, que é interlocutor da CCIR (Comissão de Combate à Intolerância Religiosa).

"Que esse axé de Exu abra o caminho não só da Grande Rio, mas também o da democracia, do Estado laico e o da diversidade."

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