Henry Sobel, o 'rabino do Brasil', tem biografia que vai de ditadura a Playboy

Sociólogo e conselheiro escreve sobre relação do líder religioso com políticos, de Lula a Bolsonaro

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São Paulo

"Yesterdaaaaaay", cantou um Henry Sobel já fisicamente abatido, aos 70 anos, entoando sem muita afinação a música dos Beatles sobre um passado em que os problemas pareciam tão distantes.

Sobre a cabeça do rabino, além da quipá vinho que ele comprava aos montes em Nova York, pairavam algumas "dúvidas existenciais", como o próprio explicou. "Estamos ‘numa nova’ capítulo da vida", disse a esta repórter, em 2014, o rabino luso-americano do sotaque que nunca foi embora, mesmo após quatro décadas no Brasil. "Será que sou um sucesso ou um fracasso?"

O recém-lançado "Henry Sobel - O Rabino do Brasil", do jornalista e sociólogo Jayme Brener, poderia dar uma resposta chapa-branca a essa indagação, dado o histórico de amizade entre biógrafo e biografado. O livro, contudo, evita essa ratoeira narrativa ao apresentar uma trama de louros e espinhos, com uma combinação de palavras-chaves tão heterogênea quanto ditadura, Playboy e Torá.

Henry Sobel durante lançamento de livro - Bruno Poletti - 4.jul.2014/Folhapress

Sobel morreu em 2019, ainda sob a sombra de sua prisão em Palm Beach, na Flórida, 11 anos antes, após sair sem pagar por quatro gravatas surrupiadas de uma loja Louis Vuitton. Na época, pôs o furto na conta de uma desorientação causada por remédios tarja preta que, de fato, tomava.

Ele passou boa parte dos seus últimos anos tentando reabilitar a porção mais florescente da sua trajetória. Não é exagero dizer que, na esfera pública, este gringo alto e louro encarnou a face mais conhecida do rabinato nacional. Por sua participação no caso Vladimir Herzog, virou símbolo da luta pelos direitos humanos no Brasil.

Embarcou no Aerolula e confraternizou com os "queuídos" (sua pronúncia para queridos) tucanos, com predileção por FHC. Buscou influenciar todas as últimas temporadas políticas do país, de João Baptista Figueiredo, o último dos generais-presidentes da ditadura militar, a Jair Bolsonaro, o presidente saudosista do regime militar.

Nem sempre para júbilo dos seus pares, transbordou as expectativas sobre o papel de um líder religioso na comunidade judaica.

Isso desde a juventude, quando teve um suposto e muito noticiado affair com uma estrela hollywoodiana. Maureen O’Sullivan, que havia vivido a Jane em um filme do Tarzan. Ela, uma viúva de 55 anos. Ele, 22, um estudante da Hebrew Union College, o mais antigo seminário judaico dos EUA.

Décadas depois, topou ser entrevistado para a Playboy, lembrada por quem viveu a era pré-internet como "uma Ferrari das chamadas revistas masculinas", na descrição do autor. Suscitou a ira de alas conservadora da comunidade judaica, mas também alguma simpatia de colegas.

Benno Milnitzky, àquela altura presidente do Congresso Judaico Latino-Americano, sapecou à época: "A própria Bíblia tem passagens muito sensuais no livro ‘Cântico dos Cânticos’. Não acredito que haja um judeu que não goste de ver mulher pelada".

Afeito a holofotes, Sobel nunca deixava a mídia sem resposta. Exemplo anedótico relatado no livro: a jornalista que quis saber o que ele achava sobre a possibilidade de vida em Marte. "A resposta deveria fazer parte do currículo dos cursos de jornalismo: ‘Para o judaísmo, a conquista do espaço interior é muito mais importante do que o domínio do espaço exterior’."

A biografia começa com uma frase do rabino que sintetiza bem seu fascínio pelo poder. Nela, Sobel elogia o rei David, personagem compartilhado por cristãos e judeus. "Eu me encantava com seu caráter tão... humano. O próprio rei, tão poderoso, que, no momento do auge, dançava com a Torá junto de seu povo —e justificava essa alegria diante das reclamações da esposa contra seus ‘excessos’! Um homem tão importante e tão próximo da realidade dos seres humanos comuns."

"Dê uma olhada com calma nas fotos", Brener sugere na abertura do livro. É a deixa para introduzir três passagens cruciais na vida de Sobel. ​

Na primeira fotografia, de 1975, o rabino está ao lado do cardeal-arcebispo de São Paulo, dom Paulo Evaristo Arns, de quem se tornaria amigo. Com um pastor presbiteriano, eles conduziriam um ato ecumênico na Catedral da Sé em protesto pelo assassinato do jornalista Vladimir Herzog.

Sobel estava havia cinco anos no Brasil, indicado pelo decano da Hebrew College para atuar na CIP (Congregação Israelita Paulista). Herzog, judeu, havia sido torturado e morto nos porões da ditadura, e militares tentaram ver se colava a versão de suicídio.

A versão mais corrente sobre o envolvimento do rabino nesse episódio: ele teria se recusado a enterrar Vlado na ala de suicidas do cemitério judaico, o que seria uma desonra.

O autor trabalha com essa hipótese, mas oferece outra: de acordo com um advogado que acompanhou o caso, a decisão de onde enterrar Herzog não coube a Sobel, e sim a um rabino que precisou, inclusive, prestar esclarecimentos ao Exército. Ao longo dos anos, contudo, ele deixou fluir a versão de que tomou a iniciativa de peitar o regime.

Quem se debruçar na história do líder judaico vai encontrar algumas incoerências em suas falas. Vai uma amostra prosaica? Ele disse à Playboy que foi a Woodstock e passou longe das drogas, e à Folha, em 2014, que fumou, tragou e gostou de maconha em workshops do festival.

O Sobel retratado por Brener tem interesse genuíno nos direitos humanos e foi a suas primeiras manifestações ainda nos EUA dos anos 1960, uma antirracista e outra contra a guerra do Vietnã.

A segunda imagem destacada no livro foi tirada 30 anos depois do ato na Sé: ele em pé, divertindo passageiros do avião que levava o então presidente Lula para o enterro do papa João Paulo 2º. A comitiva contou com os ex-mandatários José Sarney e FHC —que, em tom de galhofa, recusou as lulas fritas servidas no voo.

Sobel, aliás, apresentava-se como "uma espécie de tucano honorário com sotaque ianque" e certa vez disse sobre Lula: "Não confio nesse cachaceiro".

Não consta que tenha convivido com Bolsonaro, mas seu biógrafo e conselheiro conta que, já com "ideias confusas", em 2018, pediu-lhe ajuda para redigir um texto de apoio ao então presidenciável.

Brener afirma que tentou argumentar: "Mas ele é contrário à defesa dos direitos humanos, que sempre foi sua causa…". Nada feito: Sobel se disse convencido de que Bolsonaro seria bom para Brasil, judeus e Israel. O endosso passou despercebido, sinal da influência quase nula que tinha pouco antes de morrer, de câncer no pulmão.

No terceiro retrato escolhido pelo autor, de 2008, Sobel parece ter caído na armadilha de um fotógrafo. Posa ajeitando a gravata em frente ao túmulo de Herzog. Não tinha nem um ano que havia sido fichado por afanar gravatas na Flórida, desgaste que provocou sua saída da CIP após 37 anos de serviço.

As três imagens, encadeadas assim, formam um arco claro, de ascensão, apogeu e queda de um homem que sempre zelou pelo seu lugar ao sol no debate público. Como na descrição que usou para o rei David, Henry Sobel foi "um homem tão importante e tão próximo da realidade dos seres humanos comuns", como mostram os vários depoimentos espraiados pelo livro, de Ivo Herzog (o filho de Vlado) ao "queuído" FHC.

Henry Sobel - O Rabino do Brasil

  • Preço R$ 75
  • Autor Jayme Brener
  • Editora Ex Libris
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