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Julgamento sobre rastreamento de armas está travado há dois anos no TCU

Portarias foram publicadas em março de 2020 e revogadas no mês seguinte a pedido de Bolsonaro

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Brasília

O julgamento de três portarias editadas para aumentar os mecanismos de controle e rastreamento de armas de fogo e munições no país está travado há quase dois anos no TCU (Tribunal de Contas da União). O caso foi aberto em maio de 2020 e tramita sob sigilo.

As portarias foram publicadas pelo Comando do Exército em março de 2020 e revogadas no mês seguinte. Na época, Jair Bolsonaro (PL) anunciou em redes sociais ter ordenado a anulação das normas sob a justificativa de que elas não se adequavam a "diretrizes definidas em decretos" sobre armamento.

As normativas aumentam o controle de armas e munições e são consideradas por especialistas como fundamentais para o esclarecimento de crimes a partir do rastreamento do armamento legal que migra para a ilegalidade.

Militares com armas durante exercício em Formosa, Goiás, em outubro de 2021 - Ueslei Marcelino/Reuters

Na sua gestão, Bolsonaro estimulou o cidadão comum a se armar e liberou o acesso da população a equipamentos de calibres maiores. Desde 2019, o governo publicou 15 decretos presidenciais, 19 portarias, dois projetos de lei e duas resoluções que flexibilizam as regras.

As medidas adotadas ampliam o acesso da população a armas e munições e enfraquecem os mecanismos de controle e fiscalização de artigos bélicos.

Como a Folha mostrou, as três portarias do Exército aprimoravam as regras de rastreamento e identificação de armas de fogo e munições.

O ministro relator da representação no TCU, André Luís de Carvalho, disse à Folha que ainda não há previsão para levar o processo para votação.

"O processo ainda está na secretaria fazendo análise das diligências, então ele ainda não estaria pronto para o julgamento e, por isso, ele não voltou para o gabinete. Eu acredito que diante de todos os fatos novos que ocorreram, até aquele andamento da ação no Supremo, a secretaria está analisando tudo isso", disse o ministro.

A última manifestação da área técnica do TCU, em 9 de dezembro de 2021, apontou que o Exército deu diferentes explicações a corte de contas, ao MPF (Ministério Público Federal) e ao STF (Supremo Tribunal Federal).

"Quanto à edição da Portaria Colog 62/2020, que revogou as Portarias Colog 46, 60 e 61/2020, o Comando Logístico do Exército não foi capaz de apresentar documentação contemporânea ao ato administrativo onde esteja registrada a sua motivação. Ao longo dos meses que se seguiram à edição do ato, o órgão ofereceu três motivações diferentes ao MPF, ao TCU e ao STF", afirmaram os técnicos.

A Folha já tinha revelado que foram apresentadas versões diferentes aos órgãos, em 2020.

Ao TCU, os militares argumentaram que o motivo da revogação era a incompatibilidade entre o Sisnar (Sistema Nacional de Rastreamento de Produtos Controlados pelo Exército) e o Sinesp (Sistema Nacional de Informação de Segurança Pública), do Ministério da Justiça.

Entretanto, documentos entregues pela Justiça ao TCU mostram que não havia integração em andamento até 31 de janeiro deste ano, quase dois anos depois da justificativa.

O Exército foi procurado pela reportagem, mas não se manifestou.

O TCU, em 2020, também se manifestou e cobrou a publicação de novas portarias ao Comando do Exército. Após o pedido, o Exército enviou uma manifestação dizendo que as novas regras seriam publicadas até novembro de 2020.

Na mesma resposta, o Exército requisitou ao ministro André Luis de Carvalho a suspensão do processo até a publicação dos novos textos. O pedido foi negado e o processo continuou aberto.

As normas só foram publicadas pelos militares em 16 de setembro de 2021, dez meses depois do prometido ao TCU e um dia antes da análise da ação sobre as portarias no STF.

Documentos apontam ainda que o Exército tentou driblar o STF para inviabilizar o julgamento da corte sobre a revogação de três portarias. Isso porque as novas regras ficaram prontas em dezembro de 2020 e permaneceram paradas na mesa do comando até setembro de 2021.

A área técnica do TCU, na manifestação de dezembro do ano passado, também cita pontos da manifestação do ministro Alexandre de Moraes, na ação do STF sobre as portarias.

"Vale registrar que um de seus ministros já indicou que não reconheceu na documentação apresentada pelo Comando Logístico do Exército motivação válida para o ato de revogação praticado, o que é compatível com análises já realizadas neste processo", aponta o documento do TCU.

Bruno Langeani, gerente do Instituto Sou da Paz, disse que já há elementos suficientes para que o tribunal forme convicção sobre o processo. Na sua avaliação, mesmo tendo juntado centenas de documentos, o Exército não conseguiu afastar os indícios de desvios de finalidade na revogação das portarias.

"Há uma prova muito robusta indicando um uso político na discussão de um assunto que afeta fortemente a segurança da sociedade. Existe uma postagem púbica [tweet] do presidente da República afirmando que a ordem de revogação partiu dele, com indicação de motivações políticas. Mesmo que o Exército tenha tentado fabricar posteriormente uma justificativa técnica, isto não ficou comprovado", pontuou.

Langeani argumenta que houve prejuízo público com a revogação. O sistema de rastreamento que era para estar funcionando desde maio de 2020, diz ele, só começou a ser implantado dois anos depois, e com perdas importantes comparativamente às portarias que foram revogadas.

"Esta ação política do Exército não pode ficar sem resposta, sob pena de que interesses privados sigam sendo colocados acima do interesse público na questão de fiscalização de armamento, munições e explosivos", concluiu.

As novas portarias publicadas em setembro do ano passado, que substituíram as revogadas, entraram em vigor em março deste ano. Na visão de especialistas, elas são mais brandas.

Das portarias revogadas, uma criava o Sisnar —sistema de rastreamento de produtos controlados pelo Exército. A segunda determinava que a arma precisa ter, por exemplo, nome do fabricante, calibre e número de série. A terceira estabelecia o controle de marcação de embalagens e cartuchos de munição.

Essas novas portarias mantêm o Sisnar, por exemplo, mas retiram outros pontos importantes. Foi suprimida, por exemplo, a possibilidade de venda de munições em lotes de mil unidades, que estava presente na portaria de 2020. Dessa forma, é mantida a venda a lotes máximos de 10 mil unidades.

A obrigação de que CACs (colecionadores, atiradores e caçadores) usassem estojos marcados, que permitissem o rastreamento, também foi abandonada.

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