Descrição de chapéu Dias Melhores Folhajus

Projeto no RS ensina presas a conhecer o corpo e produzir absorventes

Com falta de insumos e de informações, pobreza menstrual é frequente em presídios do país

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Guaíba (RS)

"Nem em casa minha mãe ensinou nem na escola e fui aprender aqui no presídio", diz S.R.P., 24, uma das cerca de 370 pessoas privadas de liberdade na penitenciária de Guaíba, região metropolitana de Porto Alegre, a maior unidade prisional feminina do Rio Grande do Sul.

O que ela não havia aprendido fora dali são informações sobre anatomia e autonomia do corpo e menstruação, que descobriu em uma oficina realizada dentro da penitenciária em um projeto entre a empresa Herself, especializada em calcinhas absorventes, a Secretaria de Justiça e Sistemas Penal e Socioeducativo (SJSPS) e a Superintendência dos Serviços Penitenciários (Susepe).

GUAÍBA, RS -- Projeto feito por empresa e pelo governo gaúcho leva oficinas sobre corpo e menstruação e fabricação de bioabsorventes a unidades prisionais gaúchas. Na foto, bioabsorventes feitos por mulheres no cárcere
Projeto feito por empresa e pelo governo gaúcho leva oficinas sobre corpo e menstruação e fabricação de bioabsorventes a unidades prisionais gaúchas - Divulgação/Susepe

S., que é promotora de saúde —ou seja, ajuda a passar informações a outras presas em suas galerias— decidiu tomar injeções para evitar a menstruação dentro do cárcere, "porque não era prático".

"É complicado, porque muitas não têm [absorvente], tem que pedir emprestado. Na minha cela, são cinco mulheres, só eu que não menstruo", conta.

"Tem muita gente que não ganha sacola [produtos trazidos por familiares], e às vezes a cadeia não está dando."

A dificuldade de pessoas que menstruam dentro do cárcere ganhou alguma visibilidade com o caso de presas que usavam miolo de pão há alguns anos.

Em março, a Folha mostrou que a falta de absorventes, higiene e de infraestrutura sanitária nas prisões intensifica a pobreza menstrual no cárcere brasileiro —em São Paulo, com cerca de 8,9 mil mulheres e homens trans privados de liberdade, apenas cinco entre 21 unidades distribuíram quantidade adequada de absorventes, segundo o Nesc (Núcleo de Situação Carcerária) da Defensoria Pública estadual.

Guaíba, com cerca de 370 presas, é uma das quatro unidades prisionais gaúchas parte do projeto que alia agora oficinas sobre corpo e menstruação e a produção de bioabsorventes reutilizáveis por pessoas no cárcere, para pessoas no cárcere.

"Em Guaíba, nossa primeira sensibilização, em 2019, eu percebi que tinha muito essa questão de usar a injeção. Algumas para não ter sangramento, porque tinham alergia ao absorvente descartável, precisavam pegar pomada com médico, e optavam por parar de menstruar", conta Victória Castro, cofundadora da Herself educacional.

"É um problema super evitável. Em termos de autoestima, autonomia, é como se ‘ah, meu corpo é um problema, porque nasci com útero, sou obrigada a resolver’".

A empresa, uma das primeiras marcas de calcinhas absorventes do país, começou com uma incubadora dentro da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), conta Raíssa Assmann Kist, CEO e cofundadora da Herself educacional.

As calcinhas e bioabsorventes são feitas com tecidos desenvolvidos com tecnologia criada pela empresa e têm média de vida útil de três anos —entre os tecidos, há camadas de algodão ultra-absorvente, tecido antimicrobiano, que evita proliferação de fungos e bactérias, e tecido impermeável.

Quando começaram a pensar em reaproveitar os retalhos, elas conheceram uma assistente social que trabalhava em uma penitenciária.

"Chegando dentro dos institutos penais, a gente viu que dá para fazer muito mais", diz Raíssa, afastando uma visão romantizada de sustentabilidade.

"A realidade do Brasil é de quase 40 mil mulheres em situação de privação de liberdade. Hoje, unindo esse tripé de educação menstrual, empreendedorismo e acesso aos protetores menstruais, a gente entende que é algo que busca promoção de saúde e autonomia".

Para realizar o projeto em Guaíba, elas contaram com a mobilização da Defensoria Pública do Rio Grande do Sul. Dirigente do Núcleo de Defesa em Execução Penal da DPE-RS, a defensora Cintia Luzzatto conta que viu uma notícia sobre o projeto sendo tocado em uma unidade do interior.

"O projeto chamou nossa atenção porque a gente conhece a realidade dos estabelecimentos prisionais. É um sistema que sempre pensou na realidade masculina. Temos mulheres para as quais esses itens não são fornecidos, que só têm acesso se as famílias trazem ou igrejas, ONGs que fazem doações", diz ela.

Em um encontro de defensores públicos, no ano passado, lançaram a ideia de apoiar a iniciativa e arrecadaram doações. A primeira etapa passou a meta e levantou R$ 7.400, para a produção de 1.200 unidades de bioabsorventes — 400 kits com três unidades cada — para atender Guaíba.

"Enquanto gestora, a possibilidade de ofertar o bioabsorvente, que tem durabilidade longa, é um alívio, porque é uma preocupação constante conseguir garantir recursos para que elas cumpram as penas com dignidade. A gente aceita doações, que entidades façam campanhas, busca junto a órgãos, à secretaria, porque acompanhar de perto essa falta não é nada prazeroso", diz a diretora Isadora Minozzo.

"A gente vai continuar ofertando o absorvente descartável, porém, com uma política de educação menstrual", diz, salientando que é respeitada a opção das pessoas em usar ou não o item.

A iniciativa feita no sistema gaúcho foi citada pelo Depen (Departamento Penitenciário Nacional) em uma coletânea de boas práticas de trabalho e renda no sistema prisional.

Na unidade de Guaíba, cinco mulheres trabalharam na oficina de costura com os bioabsorventes, assinando seus nomes nas etiquetas, tendo remissão de um dia de pena a cada três trabalhados.

"É uma coisa muito boa, porque tem muitas famílias que não têm poder aquisitivo", diz S.L.F., 65, uma das mulheres na costura. "Na minha época, a mãe ensinava a gente a usar o paninho, acho que progrediu bastante".

"Quando a gente vai ficar mocinha, só falam isso, que vai ficar mocinha, não explicam o que é. Só vai aprender se for ao ginecologista ou quando tem o primeiro filho e faz pré-natal. Ajudaria muito ter essa educação nas escolas", avalia S.S.R., 29.

"Agora estou pensando em fazer curso de corte e costura. Isso é mais uma coisa que dá para gente de repente aliar", planeja A.R., 44.

O projeto deve iniciar em mais duas unidades em breve, segundo a Susepe.

Há ainda a parte do empreendedorismo, que seria a terceira etapa do projeto, focada em modelo de negócios —há tratativas para criar uma cooperativa social de mulheres presas e egressas.

"A gente acredita que dignidade menstrual é justamente essa união entre acesso a protetores menstruais, saneamento básico e condições mínimas de infraestrutura e educação menstrual", afirma Victoria.

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