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Sonhávamos com o Carnaval que sepultaria as tristezas: foi quase

No Rio, segue a abstinência carnavalesca que já se instalara antes do vírus; quem sabe em 2023?

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Alvaro Costa e Silva

Jornalista, atuou como repórter e editor. Autor de "Dicionário Amoroso do Rio de Janeiro"

Mario Filho, irmão de Nelson Rodrigues e, durante as décadas de 30, 40 e 50, o cronista esportivo mais famoso do país, sempre quis dedicar-se ao romance, tendo como modelos Tolstói e Dostoiévski. Idealizou uma trilogia jamais realizada, "A Espanhola", em torno da gripe que dizimara o Rio em 1918 e transformara o Carnaval do ano seguinte na maior explosão de alegria e safadeza da cidade.

Recém-lançado, o livro "De Sonho e de Desgraça: o Carnaval Carioca de 1919", do jornalista David Butter, faz na não ficção o que Mario Filho sonhara produzir na ficção, revelando personagens reais que superam a mais delirante imaginação.

Naquele 1º de março, aniversário do Rio, todo carioca saiu às ruas para brincar carregando o sentimento coletivo de que a vida acaba amanhã. Gente como Lorde Jamanta, folião de raça que, nos dias da peste, assumiu a função de motorneiro do bonde fantasma que recolheu corpos da zona sul à zona norte; Trinca Espinha ou Caveirinha, sobrevivente da gripe que foi um dos fundadores do Cordão da Bola Preta; o repórter Júlio Silva, que em 1919 passou à posteridade como criador do Bloco do Eu Sozinho e, durante 59 anos, atuou como solitária testemunha de Momo.

Bloco das Tubas, no Morro da Conceição, na zona portuária do Rio de Janeiro - Lucas Landau - 22.abr.2022/UOL

A expectativa era que, controlada a Covid com a vacinação em massa, 2022 fosse uma revisão —é verdade que menos esfuziante ou desesperada— do Carnaval que sepultou as tristezas da Grande Guerra de 1914 e da gripe espanhola. Não foi assim; foi quase. Mas inesquecível do mesmo jeito para quem a viveu —ou ainda está vivendo. Se a folia inédita deste ano aconteceu uma semana depois da Páscoa, a Quarta-Feira de Cinzas só virá na segunda.

Certa abstinência carnavalesca já se instalara antes do vírus, com a administração de Marcelo Crivella, para quem Momo representa o demônio e, portanto, não poderia receber as chaves da cidade. O atual prefeito, Eduardo Paes, fez questão de retomar a tradição interrompida há seis anos, mas fatiou a festa, criando uma nova ordem na qual se mantêm antigos privilégios e surgem novíssimos interesses.

Com sua indecisão planejada, Paes determinou a existência de três Carnavais: o privatizado, em lugares exclusivos e caros; o das escolas de samba, que vivem um momento de alta criatividade e reflexão sobre a própria identidade, na abertura do Sambódromo para os vacinados; e o das ruas, que teve de cair na clandestinidade e adotar uma tática de guerrilha para continuar na brincadeira.

Sem o patrocínio da fábrica de bebidas, a prefeitura agiu —quer dizer, deixou de agir— como se o cortejo de blocos fosse cancelado por decreto. Ou que, com quatro dias de folga pela frente, milhões de foliões, contando os turistas que invadem a cidade, vivessem no mundo paralelo. Ou ainda que os ambulantes vendedores dos litrões de cerveja virassem uma abstração na paisagem.

Não houve repressão aos blocos. Como também não houve plano de emergência no trânsito (exceto para as vias que levam ao Sambódromo), grades de segurança nas principais ruas do Centro (na avenida Rio Branco os carros circularam ao lado dos fantasiados em perfeita desarmonia), tendas de atendimento médico e ambulâncias, reforço no policiamento, instalação de banheiros químicos —resultando que o cheiro do xixi reinou triunfal.

Criado por "combustão instantânea" em 2006, em plena praça 15, o Cordão do Boi Tolo exibe neste domingo (24) seu estandarte rumo a destino incerto. No meio do caminho a turma pode se separar em três ou quatro "boiadas", e cada uma seguir para algum ponto do Centro, num cortejo interminável. O centenário Cordão da Bola Preta, que reúne na sua pipoca um mínimo de 600 mil pessoas, não saiu.

Foi o grande fracasso da folia fora de época, deixando a suspeita de que o ambiente carnavalesco genuinamente popular corre risco de desaparecer, substituído pelas festas privadas e os pequenos blocos secretos, com nomes trocados ou cognomes, cujos integrantes se comunicam por WhatsApp, agenda atualizada em tempo real e avisos surrealistas do tipo "A pedido da direção, evitem comparecer".

Desses, pode-se esperar qualquer coisa, como um desfile-relâmpago marcado para as seis da manhã nas ruas do morro da Conceição ou no circuito que liga o largo da Prainha à praça da Harmonia, na zona portuária.

Quem sabe se em 2023 não fazemos um Carnaval de 1919?

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