Descrição de chapéu
Krishna Mahon

Tava com saudade de cheiro dos outros

O Carnaval que a gente aprendeu, em que não se misturam Super Bonder e maconha

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Krishna Mahon

Uma amiga bem casada, feliz, com filhos, que ama desesperadamente Carnaval, resolve sair clandestinamente para um bloco sem avisar para o marido. Não que ele seja ciumento ou controlador, mas, tomada pela urgência que o fogo no rabo impõe, não dava tempo de arrumar uma desculpa.

Temos muito em comum: a noção da vida ser um sopro, o fogo no rabo, ser casada com gente legal e o fetiche de sair de noiva para blocos nada sugestivos, tipo: Casa Comigo, Tarado Ni Você, Amoribunda, Só Cume Interessa, Siriricando, Cordão Cheiroso, Filhos da Glande, Te Pego no Cantinho, Unidos do Swing. Queria ter inventado algum desses nomes, mas infelizmente esse copyright tem dono.

Pessoas fantasiadas no meio da rua
Bloco Saia de Chita na vila Ipojuca, zona oeste da capital paulista - 21.abr.2022 - Danilo Verpa/Folhapress

Óbvio que tempo é relativo e ele se alarga mais que as pernas da gente se encontrasse o Cauã. Então não tinha tempo para perder inventando alguma desculpa esfarrapada para o marido, mas tinha para se montar, botar cílios postiços, fazer esquenta na casa da amiga, mostrar o Instagram de dezenas de crushes que ela pegava só na imaginação.

Você pode ser a Madre Teresa que seu carma positivo não vai durar tanto quanto purpurina. Você toma milhões de banhos e ela aparece no cachorro, no celular, na mesa do seu escritório, na curva da bochecha gorda do chefe. Como ela foi parar lá se você nem encostou nele? PQP, devia estar na caneta que ele acabou de usar emprestada. Um amigo me contou que tinha glitter na gengiva num dia e no cocô no outro.

"Não vou passar glitter de jeito nenhum senão fulano [o marido] vai saber que eu fui pro bloco." Pensei no quanto as pessoas me abraçam na vida. Gente do audiovisual que não faço ideia de quem seja, alunos, amigos dos amigos... Imagina agora que eu tô no SexPrivé Club todo sábado de madrugada na Band. 100% de chance de voltar para casa com glitter até na borda do fiofó, assim como qualquer companheira de Uber.

Detalhe: nas poucas saídas clandestinas ela saiu na capa do UOL, G1, F5 e, sempre, sempre mesmo, foi pega pelo marido em situações constrangedoras. Eu também, mas conto em outra coluna. Ainda bem que a gente só casa com bom moço que não faz barraco e mais ri do que treta com a gente. Pensando bem, ainda bem que a gente cresceu sem rede social, YouTube, nada. Imagina minhas colegas da tradicional família mineira vendo meu lado vagabunda no Instagram @krishnamahon?

"Bota um tênis" é o que sempre repito para ela quando a gente vai sair, enquanto ela dá um upgrade no um metro e meio, subindo no que mais parece lata de Nescau, daquelas antigas.

Já reparou como o esquenta muitas vezes é melhor que a balada em si? É lá que a gente mata saudade, chora de tanto rir, conta os vexames já bolando os próximos... Dessa vez rolou maconha. Até a pandemia, salvo raríssimas exceções, eu não bebia nada e ela bebia pouco. Mas o mundo quase acabou, milhões de pessoas morreram mundo afora, e o fato de a gente ter sobrevivido... Desculpa de peidorreiro? Sim, claro.

Aliás, é muito louco que a gente tenha feito tudo que fez sem nem ter a desculpa da bebida ou das drogas (até os 40 e tals). Ouvi de um ex que safada de cara lavada é safada em décimo grau. Ele não tava certo em quase nada, mas nisso não há dúvida.

Descemos do Uber e antes do terceiro alalaô o salto dela quebrou. Ela mancava e ria, e eu ria dela. A gente ri tanto uma da outra que já sei que vou chorar até borrar a maquiagem e, em algum momento, vou ouvir "para senão vou fazer xixi na calça!"

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