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Chacinas policiais como a da Penha e a do Jacarezinho constituem grave ameaça à democracia

Plano de redução da letalidade policial no Rio de Janeiro que foi apresentado é protocolar, insuficiente e deve ser refutado

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Daniel Hirata

Coordenador do GENI/UFF

Carolina Grillo

Coordenadora do GENI/UFF

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Renato Dirk

Coordenador do GENI/UFF

É pré-requisito de qualquer regime democrático que o uso da força pelo Estado seja publicamente pactuado e limitado legalmente. No entanto, após três décadas de redemocratização, a polícia do Rio de Janeiro continua a atuar como se o Brasil ainda vivesse sob um regime autoritário. A recorrência de chacinas em operações policiais é um indicador central dessa condição.

No período entre os anos de 2007 e 2021, a base de dados do GENI/UFF registrou 593 chacinas policiais (operações com três ou mais vítimas letais) na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, que resultaram na morte em 2.374 civis e 19 policiais. De janeiro a abril deste ano, foram registradas 16 chacinas com 85 mortos. Nota-se que a ocorrência de chacinas já não pode mais ser vista como resquício autoritário, mas sim como uma marca da nossa "democracia".

Nesta última terça-feira (24), 25 pessoas foram mortas em uma ação conjunta da Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal e o Batalhão de Operações Especiais (Bope) da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, realizada nas favelas da Vila Cruzeiro e Chatuba, no bairro da Penha, zona norte da cidade do Rio de Janeiro.

Dois policiais em uma moto e outro a pé fazem segurança na frente do Hospital Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro
Polícia reforça o policiamento na rua do Hospital Getúlio Vargas, na zona norte do Rio de Janeiro, para onde foram levados feridos da operação na Vila Cruzeiro - Eduardo Anizelli - 24.mai.22/Folhapress

Esta chacina policial foi a segunda mais letal da história do estado, atrás apenas da Chacina do Jacarezinho, que resultou em 28 mortes e completou seu primeiro aniversário apenas 20 dias atrás. Ambas as chacinas policiais ocorreram sob a gestão do atual governador, Claudio Castro, e, nessas duas ocasiões, representantes das forças policiais aproveitaram para se manifestar publicamente contra a decisão do Supremo Tribunal Federal que restringiu a realização de operações policiais em favelas a situações absolutamente excepcionais.

A decisão do STF foi concedida no bojo da ADPF 635 ou ADPF das Favelas, ação judicial protocolada pelo PSB e liderada por movimentos de favela e de vítimas da violência de estado em coalizão com organizações de direitos humanos, órgãos públicos e grupos de pesquisa, visando ao controle democrático da atividade policial no Estado do Rio de Janeiro.

Nos primeiros meses de restrição às operações policiais, centenas de vidas foram poupadas sem que houvesse um aumento nas ocorrências de crimes contra a vida e contra o patrimônio. No entanto, desde outubro de 2020, momento que coincide com ascensão de Claudio Castro ao cargo de governador interino, a liminar passou a ser sistematicamente desobedecida. Em poucos meses, as operações policiais se tornaram tão ou mais frequentes e letais do que antes da restrição entrar em vigor.

Como justificativa para a resistência às tentativas de controle externo de sua atividade, as autoridades policiais argumentam que as operações policiais em favelas são imprescindíveis para o combate à criminalidade e que todas as mortes delas resultantes são legítimas porque decorrentes de confronto.

Não cabe a nós, pesquisadores, determinar se houve confronto ou execuções sumárias. É, contudo, nosso papel alertar que a ênfase das políticas de segurança pública fluminenses no confronto armado e no extermínio de "suspeitos" proporciona custos altíssimos à sociedade e não contribui para a diminuição da ocorrência de crimes.

Além dos números inaceitáveis de vítimas fatais, todos os dias milhares de pessoas são impedidas de comparecer ao trabalho e escolas, creches e serviços de saúde deixam de funcionar nas áreas onde a polícia realiza operações. Enquanto isso, os grupos criminais armados continuam controlando vastos territórios urbanos sob a ponta de pistolas e fuzis comercializados por quadrilhas altamente especializadas e entranhadas em órgão nacionais de segurança e defesa, e vendendo drogas que atravessam milhares de quilômetros do território nacional antes de chegarem às favelas cariocas.

Já os traficantes ditos "neutralizados", na base ou no topo da hierarquia criminal, são prontamente substituídos. Acreditar que chacinas são um meio eficiente de combate a uma facção de atuação nacional não se assenta em uma análise baseada em dados e evidências, mas historicamente foi sempre uma estratégia profícua em alavancar dividendos eleitorais.

Temos demonstrado por meio de uma série de relatórios a ineficiência das operações e que a prerrogativa policial de condução de incursões armadas em favelas a salvo de controles democráticos colabora para a corrupção do aparato policial e o favorecimento de alguns grupos armados em detrimento de outros.

O uso não regulado da força oficial propicia a apropriação desse recurso à violência para a obtenção de vantagens privadas, como as práticas de extorsão, da negociação da maior ou menor repressão. Parece ser antes para salvaguardar esse recurso passível de mercantilização do que para combater o crime propriamente dito que as forças policiais resistem com tanta determinação às tentativas de controle democrático da sua atividade.

A solução para resolver esta intricada equação já está posta na mesa faz muito tempo e adveio antes da mobilização da sociedade civil que de políticas estatais. Não são necessárias operações espetaculares, ocupações militarizadas ou soluções mágicas para o problema da letalidade policial. Com o conhecimento acumulado socialmente nas últimas décadas, é possível reduzir drasticamente as mortes decorrentes de intervenção de agentes de estado no curto prazo.

Mas é necessário comprometimento e não negacionismo sobre a questão. Nem o plano de segurança pública elaborado pelo governo do estado em 2020, nem o programa Cidade Integrada —sua vitrine eleitoral— fazem especial menção a esse tema.

Desde a vexatória condenação do Estado do Rio de Janeiro pela Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA no âmbito do caso da chacina realizada na Favela Nova Brasília, no Alemão, existe a previsão da elaboração de um plano de redução da letalidade policial, que em seguida foi chancelada de forma unânime pelo colegiado do STF no início deste ano.

Contudo, o plano de redução da letalidade policial apresentado é protocolar, insuficiente e deve ser refutado. Por fim, cabe dizer que o Ministério Público arquivou 15 das 28 investigações sobre as mortes ocorridas na Chacina do Jacarezinho, denotando extrema fraqueza frente a uma de suas principais atribuições constitucionais, isto é, o controle externo da atividade policial.

Ante a produção sistemática (porque reiterada no tempo), sistêmica (porque envolve diversos atores do sistema de justiça criminal) e seletiva (porque sempre dirigida aos mesmos perfis) das chacinas policiais, é preciso compreender de uma vez por todas que a violência de Estado há muito não se restringe ao campo da segurança pública e se apresenta como a grave ameaça à democracia brasileira.

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