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cracolândia

Sem efetividade, operação na cracolândia repete o ciclo de sempre

Um tratamento consistente da questão passa por duas dimensões de política pública: uma urbanística, outra humanitária

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Magno Karl

Cientista político e diretor-executivo do Livres

Um desavisado que passasse pelo centro de São Paulo na última quarta-feira (12) se perguntaria qual desastre natural poderia ter atingido tão fortemente centenas de pessoas vagando perdidas pelas ruas. A tempestade que os afetou foi uma operação conjunta das Polícias Civil e Militar com a Guarda Civil na praça Princesa Isabel, conhecido ponto de concentração de usuários de crack.

O retrato da praça ocupada é o encontro entre o desconsolo e a miséria: em barracas improvisadas ou na chuva, em colchões de papelão ou na lama, pessoas e lixo se amontoam. O choque é inevitável.

Cracolândias não são parte típica da paisagem metropolitana. Não há paralelos internacionais, seja em Nova York, Tóquio, Berlim ou Cidade do México. São Paulo é a única cidade verdadeiramente cosmopolita do Brasil, mas, se tivessem nascido em outro lugar, na megalópole do Brasil que queremos ser, aquelas pessoas não estariam ali.

Após serem tirados da praça Princesa Isabel, usuários de crack se concentram na rua Helvetia, próximo à avenida São João
Após serem tirados da praça Princesa Isabel, usuários de crack se concentram na rua Helvetia, próximo à avenida São João - Danilo Verpa/Folhapress

Segundo levantamento da Guarda Civil Metropolitana, eram em média 526 pessoas em 2019, reduziu-se para 486 em 2020 e voltou a subir para 596 em 2021. Nenhum evento é capaz de reunir centenas de pessoas todos os dias, em ruas ou praças do centro de uma grande cidade, sem a anuência ou omissão do poder público.

A migração para a cracolândia não é uma opção por um estilo de vida alternativo, mas sintoma de um problema humano e social. Há quem deseje retirar as pessoas da praça da mesma forma que o lixo, desumanizando indivíduos em profundo sofrimento. Do outro lado, há quem romantize a situação, tentando converter o cachimbo de crack em alguma espécie de símbolo de resistência, e não da urgência de socorro. Precisamos ser capazes de afastar o ímpeto de simplificação e conversar como adultos.

As políticas recentes que objetivavam fechar cracolândias foram ineficazes e, ao que tudo indica, contraproducentes. Elas também desmoralizam os agentes públicos encarregados pela segurança, remoção e limpeza do local, ao trabalharem sabendo que em breve os dependentes se reunirão e as lonas voltarão a subir em alguma outra rua da região.

Um tratamento consistente da questão passa por duas dimensões de política pública: uma urbanística, outra humanitária. Sem um esforço de ocupação permanente desses espaços, ações isoladas das forças de segurança apenas espalham os usuários, traficantes e suas barracas por outras áreas do centro, sem diminuir o número de frequentadores.

Chama atenção a ausência de integração entre a operação policial e outros equipamentos públicos em atividade na região, como as unidades de assistência social e atenção psicossocial. No papel, o programa Consultório na Rua —concebido como porta de entrada de pessoas em situação de rua no SUS— possui um mapeamento de hábitos e localidades frequentadas pela população de rua da região. Enquanto a GCM estima 596 frequentadores da cracolândia, a prefeitura diz ter realizado 163 encaminhamentos durante a operação. Qual o plano para os demais?

Em tese, através dos 32 Centros de Atenção Psicossocial especializados em Álcool e Drogas do município, o poder público deveria estar desenvolvendo e implementando Projetos Terapêuticos Singulares, com vistas a apoiar a recuperação da autonomia individual, para cada uma das pessoas na cracolândia.

Qual tem sido a efetividade desses tratamentos? O fato de que indicadores básicos das políticas públicas existentes nem sequer sejam trazidos a público pela prefeitura evidencia a falta de coordenação na concepção da intervenção e, sobretudo, a falta de foco na saúde das pessoas.

Mais de 50 anos de guerra às drogas nos ensinaram que ações pontuais para a prisão de traficantes têm pouco efeito sobre o poder do narcotráfico. No dia seguinte à operação que prendeu o chefe do tráfico na cracolândia, outros comerciantes substituíram o preso, o preço da droga subiu em virtude de sua temporária escassez, e o mercado seguiu vivo em outras regiões do centro de São Paulo.

Os ciclos se repetem: cracolândias antigas são fechadas e outras aparecem em seu lugar; chefes do tráfico são presos e outros assumem o comando dos negócios; pessoas com dependência química seguem à margem da sociedade, sem tratamento de saúde ou possibilidade de recuperar sua autonomia; a população preocupada com a hora do trabalho se acostuma com a paisagem triste e a vida política segue.

Mas, neste caso, o enxuga-gelo é mais significativo do que a simples pilhéria: crescem o estigma sobre o usuário que necessita de tratamento médico e o poder daqueles que fazem fortuna explorando a dependência de pessoas que, no fundo, são como eu e você.

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