'Escárnio': historiador e arquiteta criticam venda de cadeiras do Pacaembu em loja de móveis

Peças são vendidas por até R$ 1.799; intervenções nas arquibancadas foram autorizadas previamente por conselhos, dizem Estado e município

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São Paulo

A venda de cadeiras de arquibancadas do estádio do Pacaembu, em São Paulo, recebeu críticas de especialistas. Na quarta-feira (27), a loja de móveis Tok&Stok colocou os assentos à venda na internet por valores que variam de R$ 1.499 a R$ 1.799.

De acordo com a empresa, 673 cadeiras das arquibancadas laranja e manga (amarela) do estádio foram doadas pela concessionária Allegra Pacaembu, que em 2019 venceu o edital de concessão do estádio e é a atual administradora do espaço.

Estado e Prefeitura de São Paulo afirmam que as intervenções nas arquibancadas foram autorizadas previamente pelo Condephaat e pelo Conpresp, conselhos de preservação do patrimônio histório das gestões estadual e municipal. O estádio é tombado.

A Allegra afirma que o lucro das vendas será destinado à fundação Gol de Letra, organização sem fins lucrativos que desenvolve projetos para crianças e jovens de comunidades.

Cadeiras na arquibancada do Pacaembu, em 2016 (à esq.) e em anúncio no site da loja de móveis - Moacyr Lopes Junior - 12.set.16/Folhapress e Reprodução

O historiador Flávio de Campos, coordenador do Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre Futebol e Modalidades Lúdicas, da USP, critica a iniciativa.

"Colocar as cadeiras do Pacaembu à venda no mercado é um escárnio, é um processo de exclusão da população. No Pacaembu jogaram Leônidas da Silva, Pelé, Garrincha, Rivelino, a história do futebol brasileiro passa por aquele espaço e por muitas dessas cadeiras, que estão sendo arrematadas em uma loja de móveis", diz Campos.

Integrante do Conselho Participativo Municipal da Sé e pesquisadora da USP, a arquiteta e urbanista Stela Da Dalt diz ter ficado "estarrecida" com a venda das cadeiras.

"É a apropriação privada de um bem público. Dizem que o lucro vai para uma ONG, dão um verniz social e assim afugentam as críticas. Mas é uma entidade privada, e todos os itens do Pacaembu foram pagos com dinheiro público. De quanto será o lucro, quem vai olhar para isso?", questiona.

Estão vendendo um pedaço do Pacaembu, e o triste é a própria prefeitura ser displicente com isso

Stela Da Dalt

arquiteta e urbanista

Em nota, a Secretaria Municipal de Esportes da Prefeitura de São Paulo informa que "não há qualquer restrição legal ou contratual à iniciativa [venda das cadeiras]". Diz, ainda, que o mobiliário seria inicialmente descartado e que a ação da Allegra com a Tok&Stok é "uma iniciativa sócio-ambiental, com o objetivo de enaltecer a história do futebol no estádio mais emblemático da cidade".

Também em nota, a Secretaria de Governo da prefeitura afirma que o projeto de intervenção para o Complexo Esportivo do Pacaembu foi aprovado pelo Conpresp em 3 de dezembro de 2020 e que havia, no projeto aprovado, a previsão da remoção das cadeiras existentes para a instalação de novas.

A pasta informa também que "não se tratam de itens originais, mas sim de assentos que foram implantados tardiamente no Pacaembu, nos anos 1990".

Já a Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo informou que as intervenções nas arquibancadas foram autorizadas previamente também pelo Condephaat.

"No projeto aprovado pelo Condephaat está prevista a demolição e reconstrução das arquibancadas laterais, além da remoção das cadeiras existentes para a instalação de novas. Informamos também que a substituição das cadeiras já ocorria, desde a implantação nos anos 90, de forma rotineira, e que está dentro do projeto aprovado pelas órgãos", diz a nota.

A Tok&Stok afirma que recebeu 673 cadeiras da concessionária Allegra, das quais 623 serão vendidas e 50 serão doadas para jogadores —e devem ir a leilão. A empresa afirma ainda que as peças sofreram poucas intervenções, como a instalação de pernas para otimizar o uso, e que foram mantidas características como numeração original e eventuais arranhões.

A pré-venda não está mais diponível nesta quinta-feira (28). A loja não disse se as peças se esgotaram no site, informou apenas que as cadeiras estarão à venda a partir de 2 de agosto em loja de São Paulo.

Pesquisadora do projeto de concessão do Pacaembu, Stela Da Dalt afirma que, considerando que as cadeiras numeradas e descobertas dos setores laranja e manga somavam 10.831 peças, não é possível falar na sustentabilidade da iniciativa, pois apenas 6% dos itens não serão descartados. Na avaliação dela, o objetivo parece ser tornar as cadeiras item de colecionador.

"Vender por R$ 1.500 é indecente. O valor está no que foi o Pacaembu, mas só para quem pode pagar de R$ 1.500 a R$ 1.800 por cadeira."

Apoio de jogadores

Diretor da Gol de Letra, Sóstenes Oliveira afirma que a fundação foi procurada por uma agência de publicidade, que desenvolveu para a Tok&Stok a campanha "Cadeiras originais do meu, do seu, do nosso Pacaembu", e a ideia foi aceita.

"Eles também nos pediram ajuda para entrar em contato com ex-jogadores, então falamos com o Casagrande, o Raí e o Zetti. Eles gostaram da ideia, sabiam que [o lucro] seria revertido para a Gol de Letra, tem esse aspecto social", diz Sóstenes. "Obviamente eu pensei em toda essa história da concessão, mas são coisas distintas. As cadeiras seriam descartadas."

Não está claro como será a participação dos ex-jogadores na campanha, mas uma ideia é que cadeiras autografadas sejam leiloadas.

Foi no Pacaembu que o ex-jogador e colunista da Folha Walter Casagrande Jr. fez sua estreia com a camisa do Corinthians, há 40 anos, em fevereiro de 1982. Ele confirma que topou participar da campanha para a Gol de Letra, mas ressalta que é "completamente contra a destruição do Pacaembu".

"Não deveriam mexer em nada, por tradição e pela história que o estádio tem na cidade. O Pacaembu é o estádio mais querido dos torcedores de São Paulo, fácil de chegar, legal de assistir jogo. O Sóstenes procurou os jogadores que tinham uma história com o Pacaembu, e eu entrei a pedido dele, confio plenamente na família do Sócrates", diz Casagrande, citando os irmãos Sóstenes e Raí.

"Do ponto de vista da preservação do patrimônio eu critico [a iniciativa], mas as coisas estão acontecendo, de que adianta ficar criticando? Vamos fazer alguma coisa que seja útil."

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