Descrição de chapéu Obituário Dolores Lores Meis (1938 - 2022)

Mortes: Comportamento fechado contrastava com a intimidade epistolar

Dolores, apelidada Lolita, nasceu em plena Guerra Civil Espanhola

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Raul Juste Lores
São Paulo

Minha mãe nasceu em plena Guerra Civil Espanhola, em 1938. Seu pai não estava lá para ver. Pescador, foi arrancado de casa para lutar e nem sabia que deixava a mulher grávida de sua primeira filha. Perdeu todos os amigos que foram com ele para as trincheiras. Ao voltar, e saber da existência da pequena Dolores, prometeu que não esperaria outra guerra na Espanha alcançar seus filhos.

Dolores, apelidada Lolita, também foi arrancada de seu mundinho aos 17 anos. Meu avô veio sozinho para o Brasil. Foi dos primeiros operários a construir a Refinaria Presidente Bernardes, em Cubatão (940 km de São Paulo). Anos depois, com a refinaria inaugurada e contratado pela Petrobras, bancou a vinda da mulher e os quatro filhos para Santos.

Dolores Lores Meis (1938-2022)
Dolores Lores Meis (1938-2022) - Arquivo pessoal


Lolita deixou para trás o pitoresco vilarejo galego de O Grove, no noroeste da Espanha. Só estudou até os 10 anos de idade. Quando o pai imigrou, ela começou a pescar junto com a mãe os mais variados mariscos. Às tardes, montava uma banquinha em frente a um dos primeiros hotéis de luxo do país, o Gran Hotel La Toja, onde fazia e vendia bijuterias com conchas e outros ingredientes das praias locais.

A família chegou sem dinheiro algum, e Lolita virou empregada doméstica. Foram necessárias décadas para que ela falasse desses anos difíceis. Maus-tratos, gozações pelo sotaque, patroas acostumadas a relegar a empregada a cubículos sem janela.

Se cada humano contém multidões, minha mãe podia ser uma metrópole chinesa. Ora doce, ora antissocial, melancólica e enigmática, casou quando quis —aos 34 anos, "tarde" para os padrões de 1972. Teve dois filhos e, pouco depois, um câncer de mama, à época, uma sentença de morte. Lembro uma conversa com meu irmão, que parece saída do filme "Cría Cuervos", em que os dois meninos ouvíamos os adultos discutirem nossos destinos quando minha mãe partisse. Mas foi um falso alarme, como em dezenas de outras vezes, depois da mastectomia, de algumas recidivas, tumores, osteoporose, um câncer no intestino, embolia. Ela usava a vaidade, um apurado senso de estilo e o porte esbelto como escudo para tanta fragilidade.

Nunca superou a nostalgia pelo Grove. Por 40 anos, manteve uma correspondência constante com as amigas de infância, com quem podia continuar sendo a menina sonhadora das conchinhas. Escrevia cartas de muitas páginas para Mercedes e Marujita, que resumiam a vida, as fofocas, os causos. Seu comportamento tão fechado contrastava com a intimidade epistolar. Morreu no domingo (10), aos 84 anos, depois de uma longa pneumonia, em Santos.

coluna.obituario@grupofolha.com.br

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