'Betinho estaria absolutamente indignado e mobilizado contra a fome', diz filho do sociólogo

Morto há 25 anos, Herbert de Souza deixou um legado na defesa da democracia e dos direitos humanos

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São Paulo

Há 25 anos, em 9 de agosto de 1997, o Brasil perdia Herbert de Souza, o Betinho, referência na defesa da democracia, da igualdade e dos direitos humanos.

Em 1993, quando o Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) revelou que 32 milhões de brasileiros passavam fome, Betinho fundou a Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida e foi capaz de mobilizar todo o país pela causa.

Hoje, 33 milhões passam fome no Brasil, de acordo com levantamento divulgado em junho pela Rede Penssan (Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional). Pesquisa Datafolha realizada no mês passado também mostrou que 1 em cada 3 brasileiros não teve comida suficiente em casa. Para Daniel Souza, presidente do conselho da Ação da Cidadania, o sociólogo estaria indignado.

Herbert de Souza, o Betinho, morreu aos 61 anos - Luciana Whitaker - 21.dez.1995/Folhapress

"Ele estaria absolutamente indignado e estaria mobilizando toda a sociedade para o combate à fome. A indignação o movia", diz Souza, que é filho de Betinho. "Esta é uma situação que revolta a todos nós, principalmente porque em 2014 a gente saiu do Mapa da Fome [da FAO, agência da ONU para a Alimentação e a Agricultura]. O Betinho não viu isso, não viu as políticas públicas que sugeriu serem implementadas, não viu como o poder público combateu a fome e como foi um exemplo para o mundo, e eu realmente lamento que ele não tenha visto."

Em 2007, diante da melhora dos indicadores sociais, a campanha Natal sem Fome da Ação da Cidadania mudou e passou a arrecadar livros e brinquedos. E assim foi durante dez anos, até que em 2017 voltou a receber doações de alimentos. Em 2018 o Brasil estava novamente no Mapa da Fome.

Diretor-executivo da Ação da Cidadania, Kiko Afonso avalia que a sociedade está cansada, mas diz que é preciso se inspirar na energia de Betinho.

"Temas como esse da criança que ligou para a polícia porque não tinha alimento somem rapidamente dos jornais no meio de tantas outras tragédias que estão acontecendo. Acho que a normalização da tragédia acaba fazendo com que as pessoas sintam dificuldade de se mobilizar, de se manifestar", afirma.

"Mas a gente não pode parar nunca, não há inspiração maior que o Betinho, uma pessoa hemofílica, que teve tuberculose na adolescência e quase morreu, foi exilado, voltou para o Brasil e pegou Aids numa transfusão de sangue. E mesmo depois disso tudo consegue ser a pessoa que liderou um dos maiores movimentos sociais da história da América Latina."

Pessoas que conviveram com Betinho destacam sua habilidade para o diálogo e sua capacidade de convencimento e mobilização. A historiadora Dulce Pandolfi lembra como ele teve êxito ao reunir diferentes setores da sociedade.

"O sucesso da campanha se deveu exatamente a essa grande articulação que ele conseguiu fazer, essa grande sensibilização da sociedade. Ele conseguiu despertar o país para o combate à fome. Mobilizou o empresariado, os artistas, os intelectuais, os meios de comunicação, os estudantes. De fato, uma campanha belíssima", afirma.

Pandolfi e Kiko listam uma série de razões que levaram o país a ter 33 milhões de pessoas com fome, com destaque para o desmonte de políticas públicas de segurança alimentar, sobretudo no governo Jair Bolsonaro.

"O Betinho sabia e todos nós sabemos que a fome, para ser erradicada, precisa de políticas públicas. Mas, como ele dizia, 'quem tem fome, tem pressa', daí a necessidade de fazer ações emergenciais. O Brasil deve ao Betinho o fato de a fome ter entrado na pauta, na agenda pública do país", diz a historiadora.

"Tivemos a redução dos programas da assistência social, a redução do apoio aos pequenos produtores. A gente está nessa situação por uma decisão política. Eu digo sempre e o Betinho dizia: ‘a fome é uma decisão política’", acrescenta Kiko Afonso.

Para ele, é urgente a ampliação dos programas de transferência de renda —e este é um dos pontos da Agenda Betinho 2022, documento lançado em junho pela Ação da Cidadania com 92 propostas para combater a fome no Brasil.

"O que a gente precisa fazer, no curtíssimo prazo, é voltar com um programa de transferência de renda bem feito", afirma. "Paralelo a isso, precisamos voltar a adotar as políticas de segurança e soberania alimentar pensando na população em primeiro lugar, depois você pensa no negócio. Primeiro você precisa alimentar a população brasileira com alimentos saudáveis, acessíveis."

O combate à fome é considerado por muitos o maior legado de Betinho, mas o sociólogo também é referência em outros temas, como o Movimento pela Ética na Política, que resultou no impeachment de Fernando Collor de Mello, a defesa da reforma agrária e a campanha Sangue Não é Mercadoria.

Betinho e seus irmãos Henfil e Chico Mário, também hemofílicos, contraíram o HIV durante transfusões de sangue. Em 1987, o sociólogo fundou a Abia (Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids), que defendia a implantação de políticas públicas e o acesso a medicamentos.

Betinho com o amigo Atila Roque e a filha de Atila, Izabel, em Itatiaia
Betinho com o amigo Atila Roque e a filha de Atila, Izabel - Arquivo pessoal

Para Veriano de Souza Terto Jr., vice-presidente da Abia, Betinho deixou um legado de solidariedade. "Ele dizia que os problemas da sociedade devem ser vistos de forma solidária. E solidariedade significa participação ativa, interdisciplinaridade. É a visão de conjunto, de que é preciso esforço coletivo para enfrentar um problema que é coletivo."

Amigo próximo e então assessor de Herbert de Souza —a quem conheceu no Ibase (Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas), também fundado por Betinho—, o historiador e cientista político Atila Roque, diretor da Fundação Ford no Brasil, aposta que, se estivesse vivo, Betinho hoje estaria engajado no combate ao racismo.

"Eu acho que ele talvez dissesse: com racismo não há democracia. Ele seria um grande aliado da luta antirracista, como não negro, como liderança branca, como um líder respeitado e de enorme carisma. Com essa tremenda capacidade que ele tinha de despertar o melhor na pior das pessoas, ele seria capaz de falar com os racistas e trazê-los para a luta contra o racismo. Acho que ele seria capaz disso."

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