Descrição de chapéu Folhajus

Justiça brasileira investigou Margarida Bonetti por 5 anos, mas nunca a encontrou

Inquérito, que durou de 2000 a 2005, foi arquivado por falta de provas de que personagem do podcast A Mulher da Casa Abandonada estaria no Brasil

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

São Paulo

Em 2005, um inquérito aberto pela Justiça brasileira para investigar Margarida Bonetti –suspeita de manter, junto com o marido, uma empregada em situação análoga à escravidão nos Estados Unidos por 20 anos– foi arquivado por falta de provas de que ela estaria em território nacional, mostram os documentos do caso.

A história foi retratada pelo jornalista Chico Felitti no podcast A Mulher da Casa Abandonada, da Folha.

A investigação brasileira, que teve início em 2000, mostra que, durante quase cinco anos, foram expedidas dezenas de ordens de serviço para que agentes localizassem e intimassem Margarida no casarão de sua família, em Higienópolis, São Paulo. Todas sem sucesso.

Margarida Bonetti, uma senhora branca, baixa e corpulenta, usa touca e um casado preto. Ela conversa com um homem branco de barba grisalha. Ele usa boné preto e uma camisa vermelha. Eles estão em frente à janela arrombada durante ação policial na casa abandonada, em Higienópolis.
Margarida Bonetti conversa com a polícia após agentes arrombarem janela de sua casa, em Higienópolis, São Paulo, durante ação no último mês de julho. - Eduardo Knapp/Folhapress

Margarida vive na residência desde 1998, ano em que deixou os EUA para retornar ao Brasil. Seu marido na época, Renê Bonetti, foi julgado pela Justiça americana e, em 2000, condenado a seis anos e meio de prisão.

O inquérito nacional contou com participação de autoridades americanas, que no início das investigações manifestaram o desejo de que a mulher fosse extraditada. A Constituição Federal veta a extradição de brasileiros natos, então o assunto não foi adiante.

A legislação brasileira permite, por outro lado, que cidadãos sejam processados pelo Estado por crimes praticados em outros países, desde que sejam cumpridos alguns requisitos.

Os americanos ainda afirmaram que "facilitariam o intercâmbio de todas as informações e evidências relevantes" sobre o casal Bonetti, o que nunca ocorreu.

A embaixada dos Estados Unidos em Brasília preferiu não responder aos questionamentos da reportagem sobre o inquérito e disse que o FBI (a polícia federal americana) é o responsável pelo assunto.

Procurado pela reportagem, o FBI não se pronunciou sobre o caso.

Em março de 2000, um dos requerimentos, endereçado a Gary Zaugg, então representante legal do FBI, mostra que a Justiça brasileira apurava os fatos em razão da suposta presença de Margarida Bonetti no Brasil.

Os brasileiros então solicitaram o compilado de provas recolhidas pela Justiça americana e ainda disseram que o crime em questão –reduzir alguém à condição análoga à de escravo– é previsto no artigo 149 do Código Penal do Brasil, com pena de 4 a 8 anos de reclusão.

A resposta americana chegou somente em fevereiro de 2004, mais de três anos após o início das investigações. Nela, o Departamento de Segurança Interna dos Estados Unidos dizia não ser possível compartilhar informações sobre Renê Bonetti por ele ser naturalizado americano. As solicitações sobre Margarida também não foram atendidas.

Sem o auxílio da Justiça americana ou a localização de Margarida Bonetti, o delegado do caso pediu, em março de 2005, o indiciamento indireto –quando a pessoa investigada não foi localizada ou não compareceu perante a autoridade policial para os esclarecimentos necessários– da mulher.

O MP-SP (Ministério Público de São Paulo), representado pelo procurador Mário Fernando Pariz, discordou e solicitou o arquivamento do caso.

"Não cabe ao Estado brasileiro processar Margarida, vez que, conforme o artigo 7° do Código Penal, somente seria possível punir a brasileira caso ela cometesse crime contra a vida ou a liberdade do Presidente da República; contra o patrimônio ou a fé pública das pessoas jurídicas de direito público; contra a administração pública [...]; e, finalmente, se a indiciada cometesse o crime de genocídio", declarou a Promotoria.

À Folha, explica que esses são casos de extraterritorialidade incondicionada, em que é liberada a aplicação da lei penal brasileira para crimes cometidos no exterior, independentemente de qualquer outro requisito.

Há também a extraterritorialidade condicionada, em que Margarida Bonetti, poderia ter sido enquadrada, de acordo com o procurador.

Para que isso acontecesse, porém, eram necessários alguns requisitos. Segundo Pariz, todos foram cumpridos nesse caso, menos um: não havia provas de que a suspeita estivesse em território brasileiro.

"Não a encontraram, só isso impossibilitava a extraterritorialidade condicionada, ela cumpria todos os outros requisitos, mas é a lei. Não podemos indiciar alguém com base em boatos", diz o procurador. "Também não havia provas do crime, a Justiça americana não enviou. Por isso, aconselhei o arquivamento", completa.

A manifestação do Ministério Público foi acatada pelo juiz responsável, e o inquérito acabou arquivado em março de 2005.

Mesmo hoje sendo de conhecimento geral que a mulher vive na casa, nada pode ser feito contra ela. Conforme o Código Penal, o crime pelo qual Bonetti foi investigada prescreve em até 16 anos.

A história voltou aos holofotes em junho deste ano, com a estreia do podcast A Mulher da Casa Abandonada. Todos os episódios já estão disponíveis nas principais plataformas de áudio, como Spotify, Apple Podcasts e Deezer.

Rapidamente, o podcast se tornou um dos mais ouvidos do país, e a casa abandonada um ponto turístico. No episódio de encerramento, Felitti entrevistou Margarida Bonetti, que negou todas as acusações.

Em julho, policiais estiveram no local para averiguar crime de abandono de incapaz e maus-tratos contra animais. A ação foi criticada por especialistas.

O podcast é uma reportagem que se baseou em registros de um caso de notório interesse público, procurou ouvir todos os envolvidos e deu espaço às versões dos que se manifestaram. A série não é uma investigação policial nem um processo judicial. A Folha condena qualquer tipo de agressão e perseguição contra as pessoas retratadas.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.