Cidade do Rio Grande do Sul adota o polonês como língua cooficial

Em Áurea, região do Alto Uruguai, idioma está no currículo escolar

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Porto Alegre

Em um pequeno município do Rio Grande do Sul, a mais de 350 km de Porto Alegre e a 11 mil km da Polônia, cumprimentar alguém na rua falando "dzień dobry" é tão bem aceito quanto "bom dia". Desde 22 de julho deste ano, Áurea, na região do Alto Uruguai, estabeleceu o polonês como idioma cooficial da cidade.

Não é inédito no Brasil que municípios adotem o idioma dos seus imigrantes como oficial, ao lado do português. O alemão ou dialetos dele, por exemplo, foi adotado por ao menos 14 cidades de estados como Rio Grande do Sul e Espírito Santo.

Em Áurea, todavia, a lei é mais do que uma decisão simpática da Câmara de Vereadores. O polonês está no currículo escolar do 6º ao 9º ano do ensino fundamental e é ensinado por professores voluntários no turno da noite aos interessados em aprendê-lo ou aprimorá-lo.

Museu na cidade de Áurea, no Rio Grande do Sul, que leva o nome de um dos primeiros patriarcas vindos da Polônia - Prefeitura de Áurea/Divulgação

Cerca de 90% dos habitantes são descendentes diretos de poloneses e a maior parte ao menos arrisca algumas palavras na língua, de origem eslava, semelhante ao russo.

A resistência do idioma, bem como de outras tradições originárias do país, é encarada pelos 3.517 habitantes (estimativa do IBGE em 2021) como uma espécie de retribuição aos esforços imprimidos desde que 12 famílias chegaram à localidade no início do século passado.

A data exata é controversa. Conforme Artemio Modtkowski, tradutor com dois livros publicados sobre a história da cidade, elas teriam chegado na madrugada de Natal de 1911, com a promessa de terra do governo. Desembarcaram primeiro em Porto Alegre, depois foram conduzidas de trem até a região em que hoje é o município de Getúlio Vargas. Por fim, foram orientados a caminhar mata adentro por 17 quilômetros até o novo lar.

"A Polônia mal existia à época. Era uma terra de ninguém dividida por três impérios [Prússia, Império Russo e Áustria] e as pessoas mais pobres trabalhavam em troca de comida. Aqui não foi muito diferente, vieram pela promessa de um lote de terra, mas, fora isso, receberam apenas alguns mantimentos e um serrote, para se virar com os eucaliptos", conta Artemio.

Desde 1951, o museu João Modtkowski –nome aportuguesado de um dos primeiros imigrantes, originalmente "Jan"– abriga objetos, documentos, imagens e outras relíquias da imigração. Virou destino recorrente de universitários estudiosos das imigrações gaúchas. Nas fotos, é possível ver as primeiras casas de rolos de eucaliptos e a mata cerrada em torno da localidade, que se tornou um município emancipado de Gaurama em 1987.

Uma segunda leva de imigrantes foi decisiva para o estabelecimento do povoado em 1944, quando, assoladas pela Segunda Guerra Mundial, algumas dezenas de famílias chegaram ao local vindas sobretudo da região de Legnica, sudoeste do país, disputada em batalhas sangrentas por nazistas e soviéticos. A Polônia contabilizou 6 milhões de mortos na guerra, o país com mais baixas proporcionais à sua população, hoje de 38 milhões de habitantes.

Foi em 1944 também que a localidade, outrora chamada de Rio Marcelino, Treze de Maio e Princesa Isabel ganhou o nome de Vila Áurea. É uma homenagem à princesa que assinou a lei que aboliu a escravatura no país. Consta que a Princesa Isabel teria acolhido famílias polonesas que chegaram ao Brasil flageladas por uma epidemia no caminho, possivelmente de cólera, por volta de 1875. A generosidade da princesa carece de fontes seguras, mas ficou o nome.

Além do idioma, de origem eslava, semelhante ao russo, a cidade homenageia a Polônia batizando sua praça de João Paulo , papa polonês falecido em 2005 e canonizado em 2014, mesmo ano em que ganhou uma estátua em Áurea em frente à igreja da Nossa Senhora de Częstochowa –ou de Montes Claros, para quem precisar pedir direções.

O município também elege sua corte de rainhas e princesas da imigração polonesa, tem grupos de dança polaca e celebra, no início de junho e do frio invernal, a Festa da Czarnina, um prato típico. A czarnina (pronuncia-se "tianina") se popularizou entre imigrantes, "mais pela necessidade do que pela tradição", conforme Artemio. É uma sopa quente que usa sangue de pato como caldo, devidamente temperado com vinagre e especiarias.

Há iguarias menos inusitadas, como o bigos, um cozido de carne suína com repolho e chucrute, e o pierogi, uma espécie de pastelzinho de requeijão que pode ser frito ou cozido. Todos os pratos são servidos na Pousada da Mamucha, logo na entrada do município. "Sim, quero mais" em polonês é "tak, chcę więcej" e "não, obrigado" é "nie, ozdobny".

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