Indígenas querem 'bancada do cocar' no Congresso após retrocessos no governo Bolsonaro

Propostas incluem retomar pressão por demarcação de terras e enterrar discussão sobre marco temporal

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Brasília

O descaso do governo de Jair Bolsonaro (PL) com a demarcação de terras indígenas e seu discurso em defesa da exploração desses territórios por garimpeiros levaram indígenas a lançarem um recorde de candidaturas ao Congresso em 2022.

Dados do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) mostram um aumento de 40% do número de candidatos que se declaram indígenas no atual pleito –são 186, ante 133 em 2018. Em 2014, eram 85.

A maior parte concorre a uma vaga à Câmara, onde, hoje, Joenia Wapichana (Rede-RR) é a única representante indígena.

A Folha conversou com nove postulantes a um assento no Legislativo e com Raquel Tremembé (PSTU), vice na chapa de Vera (PSTU) ao Palácio do Planalto.

Foto da deputada Joênia Wapichana, a única indígena na atual legislatura do Congresso Nacional. A imagem a mostra em um corredor da Câmara dos Deputados. Ela veste vestimentas tradicionais
A deputada Joenia Wapichana (Rede-RR) é atualmente a única indígena no Congresso - Gabriela Biló/Folhapress

Em comum, a maioria dos candidatos relata invasões de garimpeiros a suas terras e a preocupação com a preservação da cultura.

Diz também que é necessário aumentar a representatividade no Legislativo para barrar o avanço de projetos como a regulamentação da mineração em suas terras e a tese do marco temporal —que considera territórios indígenas os tradicionalmente ocupados na data da promulgação da Constituição, em 5 de outubro de 1988.

Em abril, o Acampamento Terra Livre (ATL), tradicional encontro indígena em Brasília, pela primeira vez teve uma mesa para debate de candidaturas. O evento foi considerado um marco.

"É a primeira vez que o movimento [indígena] chama e declara apoio às candidaturas. Historicamente, se entendia que a resistência tinha que ser no campo do movimento social, mas com Bolsonaro, entendemos que é hora de brigar dentro do sistema", afirma Sonia Guajajara (PSOL-SP), coordenadora da Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), que organiza o ATL.

"Pretendemos agora é eleger não só uma bancada indígena, mas nos articular com bancadas do MST, mulheres, quilombolas, LGBTQIA+. Trazer o debate ambiental para o centro do debate político."

Único a concorrer ao Senado, Bartô Macuxi (PSOL) é originário da terra indígena Raposa Serra do Sol (RR), demarcada sob oposição das Forças Armadas. Milita há quase quatro décadas pelos direitos dos indígenas, ao mesmo tempo em que atua como artista plástico.

Em duas disputas anteriores, sofreu com a falta de recursos. As dificuldades permanecem, mas agora pelo menos terá um carro emprestado para viajar. A falta de conectividade das aldeias é um dos pontos de dificuldade, pois exige a sua presença nas regiões, enquanto seus adversários concentram-se nas cidades. "Nosso trunfo vai ser falar as línguas indígenas. A internet não suplantaria isso", afirma ele.

Nice Tupinambá nasceu nove meses após a promulgação da Constituição em uma área impactada pela usina hidrelétrica de Tucuruí (PA), a 400 km ao sul de Belém. "Meu pai teve que mudar com toda a família para uma vila porque não tinha condições de pescar, não tinha condições de sobreviver e sustentar 11 filhos."

Candidata a deputada federal pelo PSOL, ela diz que se formou em jornalismo graças a uma bolsa de estudos obtida durante o governo Lula.

"É por isso que a gente defende a candidatura dele, apesar dos pesares com relação à política de proteção ambiental. No Pará, foi construída [a usina hidrelétrica de] Belo Monte, que é uma coisa que nos marca muito e a gente não esquece", diz Nice, que cobra compromisso do petista com outras formas de energia limpa.

Ela afirma que sua candidatura pretende despertar o senso de pertencimento de seu povo, uma vez que alguns desconhecem sua própria cultura, sua identidade ancestral. Diz que, quando começou a fazer campanha, não usava o cocar, mas começou a ser cobrada por seus eleitores.

Uma das propostas que quer viabilizar é o reconhecimento do que chama de professores da ancestralidade. "A língua é passada pela fala. Ela é oral. Nossos professores são pajés, anciãos, caciques, nossas benzedeiras, nossas parteiras", relata.

Também no Pará, Maial Kaiapó decidiu concorrer a uma vaga na Câmara pela Rede após uma tia dizer que estava cansada de votar em não indígena. Assim como Nice, ela é um dos nomes que estão na chapa do Parlaíndio (Parlamento Indígena do Brasil), organização que busca aumentar a representatividade indígena no Congresso.

Maial Kaiapó se formou em direito após incentivo do pai. "Eu e minhas irmãs fomos as primeiras mulheres a sair do nosso povo para estudar. Minha mãe e alguns parentes não estavam aceitando bem a saída porque tinham muito medo. Mas meu pai falou que a gente ia voltar para ajudar o povo", disse.

"Eu quero subir a rampa. Fala que é a Casa do Povo, mas sempre quando a gente chega em Brasília é recebido com spray de pimenta, com um policiamento. É exatamente por isso que a gente quer entrar pela porta da frente."

A candidata destaca a demarcação de terras como uma de suas prioridades, além da fiscalização das áreas cujos processos foram concluídos. Para isso, pede o fortalecimento de órgãos, como a Funai e o Ibama.

Entre os indígenas que disputam uma vaga na Câmara por São Paulo, Daniel Munduruku (PDT) é um dos mais conhecidos. O escritor nasceu no Pará e se mudou para São Paulo em 1987. Ele diz que a "bancada do cocar" vai ajudar a direcionar as demandas sobre demarcação de terras, por exemplo.

"Em alguns lugares, demandas sobre demarcação de terra já estão superadas. Em outros, precisa. A gente também tem que ver que a temática indígena pensada de uma forma genérica muitas vezes não corresponde ao interesse de determinada etnia ou determinado grupo."

Candidata a vice-presidente, Raquel Tremembé, que está grávida de seis meses, afirma que a situação de seu povo se fragilizou no governo Bolsonaro. "Ele nunca negou o que ia fazer com os povos indígenas. Uma coisa que a gente não pode dizer é que ele mentiu. Ele deixou bem claro que não ia demarcar um palmo de terra indígena."

"A nossa luta não é por terra. A nossa luta é por território, que é algo muito mais intenso. É a preservação desses modos de vida, dos costumes. É o costume de uma diversidade de mais de 300 povos. Não vem dizer que é tudo igual porque não é."

Ivan Kaingang (PT-PR) tem o desafio de se eleger em um estado que costuma se alinhar mais aos políticos conservadores. Ele relata que, na sua região, o agronegócio e suas enormes fazendas de plantação e de gado sufocam os territórios indígenas.

"Aqui no Sul, indígenas frequentam muito as cidades, sobretudo para vender artesanato, e muitos pedem dinheiro. Por que não ficamos no mato? Porque falta espaço, nosso entorno está tomado pela agricultura", afirma.

Ele aposta inclusive no voto dos bolsonaristas para se eleger. Seu argumento é que a solução para "os conservadores que não gostam de ver os indígenas nas cidades" é eleger mais indígenas, para melhorar a situação das aldeias.

Mas não só no campo da esquerda estão as candidaturas indígenas. Silvia Waiãpi (PL-AP) foi secretária de Saúde Indígena no atual governo e é próxima de Damares Alves (Republicanos). Ela defende as políticas adotadas pelo atual governo para os povos indígenas e a Amazônia.

"Minhas pautas são para defender o Norte do Brasil, a segurança energética e desenvolvimento econômico para fazer da Amazônia, dentro de suas possibilidades, uma Amazônia agricultável, com acesso aos recursos naturais, respeito com os ribeirinhos e respeito com os garimpeiros", diz.

Silvia acusa o seu próprio partido de discriminá-la por ser negra, indígena e apoiadora do atual presidente.

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