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Prefeitura revê, mas não desiste de programa de reconhecimento facial em SP

Licitação do Smart Sampa foi suspensa após críticas; política previa instalar sistema de segurança com 20 mil câmeras

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São Paulo

A Prefeitura de São Paulo decidiu suspender a licitação para contratar um sistema de monitoramento com a capacidade de classificar pessoas como suspeitas e rastreá-las de acordo com características físicas —incluindo cor da pele— após uma série de reações no Legislativo e entre a sociedade civil.

O recuo foi noticiado pelo Painel. "Suspendemos [a licitação], vamos corrigir eventuais pontos. É um sistema importante dentro do contexto de cidade inteligente, como ocorre nas principais cidades do mundo", declarou o prefeito Ricardo Nunes (MDB) à Folha. O pregão seria realizado na próxima segunda (5).

Segundo Nunes, apesar da suspensão, a ideia não está enterrada. "Teremos o programa, é fundamental para melhorar os serviços públicos, integrar informações em todas as áreas, ganhar em eficiência. Uso da tecnologia é crucial. O que será necessário corrigir vamos ver com a revisão, por isso suspendemos para reanálise", afirmou.

Reconhecimento facial é apresentado em convenção nos Estados Unidos - David McNew/AFP

O sistema, chamado de Smart Sampa, também previa o monitoramento das redes sociais dos cidadãos e da participação deles em eventos como greve e manifestações. "Deverá coletar e processar menções feitas na internet tanto em sites como em redes sociais, no mínimo Facebook, Instagram, Twitter, Youtube e Google", dizia trecho do documento.

Com investimento estimado em R$ 70 milhões por ano, a previsão era comprar 20 mil câmeras até 2024.

A decisão de rever o programa ocorre após recomendações feitas na Câmara Municipal de São Paulo e de uma representação feita ao Ministério Público feita pelo Idec (Instituto de Direito do Consumidor) e por outras entidades contra a instalação do sistema.

Na manhã desta quinta, a Comissão de Direitos Humanos da Câmara, liderada pela vereadora e deputada federal eleita Erika Hilton (PSOL), aprovou a recomendação para que a prefeitura suspendesse a implementação do Smart Sampa.

Nunes, que está em agenda em Montevidéu, no Uruguai, disse à rádio CBN na quinta (1º) que há um entendimento equivocado sobre o assunto. "Deixamos quase 20 dias em audiência pública antes de lançar o edital, mas é natural que a gente possa a todo momento receber sugestões e adequar alguma colocação."

O texto original, de agosto, previa que as câmeras deveriam identificar pessoas suspeitas de "vadiagem". Uma nova versão, publicada no Diário Oficial da última quarta (30), retirou o termo. Também foi retirado o termo "cor" e inserido "estrutura corporal" entre as capacidades analíticas para rastreamento de pessoas.

Ao espalhar as câmeras pela cidade, a administração planeja criar uma central de monitoramento que integrará diversos serviços municipais como CET (companhia de trânsito), Samu, Defesa Civil e Guarda Civil Metropolitana. Prédios públicos, como escolas e unidades de saúde, por exemplo, serão acompanhados por esse sistema, e bases móveis farão a vigilância em eventos.

Em nota à Folha, antes da suspensão, a prefeitura afirmou que o objetivo do programa é aumentar a sensação de segurança da população, prevenir ações criminosas e agilizar o atendimento às ocorrências, possibilitando resposta rápida às demandas.

Também disse que a plataforma permitirá a busca por pessoas desaparecidas, crianças perdidas em grandes eventos e objetos esquecidos.

Pelo plano original, o reconhecimento será feito com base em um banco de dados que coleta a biometria facial, uma espécie de assinatura. Esse recurso analisa pontos específicos do rosto, como distância entre olhos, tamanho do nariz e formato da boca. A assinatura facial será comparada com outras já existentes em um banco de imagens. Se for compatível, a pessoa é reconhecida.

Uma das principais críticas ao projeto é que esse uso de reconhecimento facial na segurança pública mira de maneira desproporcional a população negra e pode levar a prisões injustas.

"Os bancos de dados que alimentam o aprendizado da máquina são formados majoritariamente por pessoas brancas. Isso significa que o índice de erro é imenso na identificação de pessoas negras e trans, por exemplo", diz a advogada Yasmin Rodrigues, pesquisadora do núcleo de Justiça Racial e Direito da FGV (Fundação Getulio Vargas) e do projeto Panóptico, que acompanha medidas de reconhecimento facial no Brasil.

Foi exatamente esse problema que fez com que cidades americanas como San Francisco e Boston proibissem o uso da tecnologia pela polícia. O Parlamento Europeu também votou contra esse tipo de sistema.

Na China, por outro lado, o uso desse tipo de programa é cada vez mais comum nos grandes centros urbanos. E nesta semana a cidade de Mumbai, na Índia, anunciou que passaria a adotar a tecnologia em uma tentativa de combater a alta da criminalidade.

Foi o mesmo motivo que levou o estado americano da Virgínia a cancelar a proibição do uso da tecnologia —agora, ela pode ser usada com algumas limitações e desde que tenha uma acurácia (capacidade de reconhecer com exatidão cada pessoa) de pelo menos 98%. A Califórnia também analisa um projeto para permitir o uso das câmeras.

Além da questão racial, comunidades nos Estados Unidos e na União Europeia que baniram o uso da tecnologia têm discutido a acurácia e o impacto do monitoramento nas comunidades envolvidas antes de colocar essa tecnologia em prática.

Para Rafael Zanatta, diretor da associação Data Privacy Brasil de Pesquisa, a tecnologia tem sido aprimorada para diminuir os erros no reconhecimento facial.

"Houve uma corrida em direção a essa diversidade de etnias para corrigir essa acurácia em razão de uma crítica de viés racial, que teve seu ápice quando a Microsoft e outras empresas disseram que iam descontinuar seus programas", afirma. A empresa americana, assim como a Amazon e a IBM, proíbem que a polícia use suas tecnologias.

Para Zanatta, a melhoria na acurácia não garante que a questão racial esteja resolvida. "Se bipar uma porcentagem de match [correspondência] de 93% ou 97% para uma pessoa negra, para o agente não faz diferença. Ele vai atrás da pessoa. E nisso acontecem casos como o do Beto", afirma, em referência a Beto Freitas, espancado até a morte por seguranças de uma unidade do Carrefour em 2020.

Além disso, ele defende as comunidades impactadas deveriam ser consultadas para saberem se concordam com um projeto que vai captar dados constantemente para fazer análises preditivas, que buscam antecipar eventos como assaltos.

A advogada Celina Bottino, do ITS (Instituto de Tecnologia e Sociedade), diz que o edital é vago por não detalhar como vai tratar os dados pessoais.

A prefeitura afirma que a plataforma seguirá a LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados) ao utilizar "as informações apenas para os fins de segurança pública, de forma sigilosa e confidencial".

Os dados também poderão ser compartilhados com o Poder Judiciário, e a prefeitura se compromete a deletar as imagens que não forem requisitadas no prazo de 30 dias.

Em relação ao monitoramento através das redes sociais, a prefeitura disse que será feito com o propósito de "acompanhar as demandas dos munícipes por serviços municipais como buracos nas vias, alagamentos, congestionamento no trânsito, limpeza urbana, iluminação pública, sistema de sinalização e demais situações que exijam a intervenção do poder público", diz a nota.

Um estudo da Rede de Observatórios de Segurança monitorou prisões e abordagens feitas com a tecnologia nos estados da Bahia, Ceará, Paraíba, Rio de Janeiro e Santa Catarina. Entre março e outubro de 2019, a pesquisa contabilizou 151 pessoas presas. Nos casos em que as informações sobre raça estavam disponíveis, 90,5% eram negras.

Coronel reformado da Polícia Militar de São Paulo e consultor na área de segurança pública José Vicente da Silva Filho, afirma que as decisões de policiamento devem ser orientadas por planejamento e inteligência a partir de boletins de ocorrência e chamadas no 190, e critica a reunião de diversos sistemas e equipamentos no Smart Sampa para esse fim.

"Isso não tem uma função decisiva em segurança pública aqui, nem em Miami ou em San Francisco. É ilusão de que vai ajudar na segurança", diz.

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