Lei que proíbe construção contra morador de rua passa a valer e desafia prefeituras

São Paulo avalia regulamentação; Ministério Público exigirá adequação

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São Paulo

Calçadas, praças e outros espaços de uso público, mesmo aqueles diante de prédios privados, estão proibidos a partir desta quarta-feira (11) de manter estruturas e outros artifícios para impedir a permanência de moradores de rua. Agora promulgada, a Lei Padre Júlio Lancellotti altera o Estatuto das Cidades para barrar técnicas construtivas hostis.

A aplicação da regra, porém, é considerada desafiadora por especialistas e poderá demandar regulamentação municipal para dirimir conflitos como, por exemplo, a simples definição do poderá ser considerada uma arquitetura hostil.

Padre Julio Lancellotti, sob o viaduto onde prefeitura instalou pedras para afastar moradores de rua
Padre Julio Lancellotti, sob o viaduto onde prefeitura instalou pedras para afastar moradores de rua - Henrique de Campos

A lei já havia sido publicada em 22 de dezembro do ano passado, mas precisou ser republicada nesta quarta devido à necessidade de correção. Aprovada pela Câmara dos Deputados e pelo Senado, a medida chegou a ser vetada pelo então presidente Jair Bolsonaro (PL), mas o veto foi derrubado pelo Congresso.

Na cidade de São Paulo, onde o tema ganhou projeção há quase um ano após a prefeitura instalar pedras pontiagudas sob um viaduto no Tatuapé (zona leste), a gestão do prefeito Ricardo Nunes (MDB) informou que, diante da promulgação da lei, avalia a necessidade de eventual adequação da legislação ao município.

Antecipando-se a uma possível regulação municipal, a Promotoria da Habitação e Urbanismo e dos Direitos Humanos de São Paulo informou nesta quarta que passará a expedir notificações para exigir a adequação dos estabelecimentos à nova lei. A medida foi solicitada ao órgão pelo próprio padre Júlio Lancellotti, que dá nome à lei, em reunião realizada também nesta quarta.

Coordenador da Pastoral do Povo de Rua, Lancellotti promove trabalhos sociais desde 1986 e teve imagens suas viralizadas na internet quando derrubou a marretadas parte dos pedregulhos cravados abaixo do viaduto na capital paulista.

Ele disse à Folha que indicará à promotoria pontos da cidade em que são empregadas estratégias para dificultar a permanência de pessoas.

Ele citou lanças, espetos, pedras, grades e até sistemas automáticos que disparam alarmes sonoros, acendem luz forte ou gotejam (por meios de canos de água perfurados no teto de marquises) quando acionados por sensores de presença ou tempo.

Ainda mais importante do que a definição do que será considerada uma estrutura hostil, a adesão da população à eliminação desses mecanismos será fundamental para que a lei tenha efeito, segundo Paula Santoro, professora da FAU (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo) da USP e coordenadora do LabCidadade (Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade).

Ela cita artifícios como a instalação de mobiliários urbanos aparentemente destinados ao paisagismo, como floreiras, mas cuja real finalidade é afastar pessoas.

"Toda regra urbanística precisa ter aderência na sociedade. Não adianta multar todo mundo. Se não mudar a cabeça dos proprietários de imóveis, eles podem colocar até flores para evitar que o morador fique ali. É possível fazer a guerra com flores se a sociedade é hostil", diz Santoro.

Renato Cymbalista, também professor da FAU-USP, classifica como desafiadora a aplicação da regra a entes privados, embora a legislação alcance os limites externos dessas construções.

"Um condomínio pode manter grades com lanças, mas se as pontas estiverem viradas para a calçada, estará afetando uma área que é de uso público", comentou.

Cymbalista ainda reforça que a regra pode valer para estabelecimentos que possuem acordos com as prefeituras para a utilização de áreas externas, como shoppings.

Para o professor, o ponto mais importante da lei é o que proíbe as áreas públicas de manterem estruturas hostis à permanência.

"O valor principal desta lei é a narrativa. O poder público, em todos níveis, não pode mais mobilizar linguagens da arquitetura hostil. Se o fizer, estará sujeito a denúncia no Ministério Público. A lei cria a possibilidade de se defender de abuso do Estado", diz.

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