Apaixonada pelos livros e os estudos, Claudinete Batista, 55, conta orgulhosa que já leu mais de 60 obras desde que aprendeu a decifrar as primeiras palavras. Em dias de forte chuva, no entanto, a aluna do EJA (Educação de Jovens e Adultos) da escola Virgílio de Mello não consegue sair de casa para assistir às aulas de que tanto gosta.
"Não tenho como chegar na escola", explica a diarista.
Claudinete mora no Jardim Pantanal, bairro do extremo leste de São Paulo que é alvo de constantes enchentes. Todos os anos, quando começam as chuvas de verão, as ruas ficam alagadas e parte dos moradores permanece ilhada.
Quem precisa sair de casa para estudar ou trabalhar tem que se arriscar na água suja e fica exposto a doenças. São comuns os relatos de quem tenha tido sintomas como diarreia, febre e enjoo depois de entrar em contato com a água das enchentes.
É o caso da neta de Claudinete, de dez anos, que precisa atravessar o alagamento para pegar o transporte escolar.
"A gente vai de casa até o mercadinho esperar porque muitas vezes a perua não consegue vir até onde a gente está. Ela vai de chinelo e [quando] chega ali na quitanda ela troca de roupa para não chegar na escola suja", conta a avó.
Na primeira semana de dezembro, a menina teve diarreia e febre e precisou ser levada para o hospital. A suspeita de Claudinete é que ela tenha sido contaminada pela água que ficou acumulada na rua com as chuvas dos últimos dias.
O histórico de enchentes do Jardim Pantanal, que fica às margens do rio Tietê, leva os moradores a adaptarem suas casas e rotinas em uma tentativa de escapar dos estragos provocados pelos alagamentos.
As marcas de água nas paredes mostram que o cenário se repete há tempos e expõem as falhas na atenção do poder público com a região onde vivem mais de 10 mil pessoas.
Em 2009, a área ficou alagada por três meses depois que uma tempestade elevou o nível do rio, que avançou por várias quadras e deixou desabrigados.
Depois do episódio, grandes obras de drenagem, como a construção dos pôlderes nos bairros Jardim Romano e Vila Itaim, vizinhos ao Jardim Pantanal, foram anunciadas. As estruturas, compostas por barreiras, dutos e reservatórios, custaram juntas mais de R$ 180 milhões, segundo reportagens da época.
Apesar de terem diminuído o impacto das cheias, os sistemas não foram suficientes para conter os alagamentos em toda a várzea. Em novembro deste ano, a água entrou pela casa da vigilante Tatiane de Araújo Paulino, 37.
"A primeira vez que entrou [água em casa] foi em 2020. Aí a gente fez um ‘beiralzinho’ na porta, né? Quando foi este sábado [3 de dezembro] entrou [de novo]", conta a moradora. "A gente aqui no Pantanal tá abandonado."
A geografia do bairro favorece o acúmulo de água. A arquiteta e urbanista Joyce Reis explica que o Jardim Pantanal fica abaixo do nível do rio Tietê. "Naturalmente, quando houver qualquer movimentação de água, a água vai tender para essa cota abaixo do rio."
Além disso, a região é cortada por afluentes que também transbordam. O solo encharcado e a ausência de áreas verdes no local aumentam a dificuldade de absorção da água, segundo a urbanista.
Reis explica que a solução do problema é complexa e envolve ações integradas em várias frentes, como investimentos em drenagem, saneamento básico e habitação. Ela é uma das coordenadoras do Plano de Bairro Jardim Pantanal, projeto de planejamento urbano que tem mapeado, junto com moradores da comunidade, suas principais necessidades.
O projeto, que é uma realização do IAB-SP (Instituto de Arquitetos do Brasil em São Paulo) e do Instituto Alana, conta também com a colaboração da Universidade Mackenzie e da AMOJAP (Associação de Moradores e Amigos do Jardim Pantanal e Adjacências).
Sistema de drenagem e instalação de sirenes
Entre as principais reivindicações dos habitantes está a criação de um sistema de drenagem para o Jardim Pantanal. Vizinha do local e também arquiteta, Laís Avelino, 25, explica que a região sofre com a falta de guias e sarjetas para ajudar no escoamento da água da chuva.
"Toda essa área de várzea tem um problema de drenagem e escoamento de águas pluviais. Então o rio não avança, mas a água da chuva, que sai da casa das pessoas, que está ali na rua, ela também não tem escoamento. Por isso acaba alagando também", explica a urbanista.
Em junho, o prefeito Ricardo Nunes (MDB) visitou o bairro e prometeu realizar obras de colocação de guia, sarjeta e asfalto na região, além de anunciar que faria a regularização fundiária para 8.000 famílias até 2024.
As promessas foram feitas durante o anúncio de outro projeto para o bairro: o início das obras da Sabesp para levar água potável e canalização do esgoto para os moradores. Com investimentos de R$ 42,4 milhões do estado, as obras já começaram e os canteiros fazem divisa com trechos onde a água da chuva fica empossada por semanas.
No Plano de Bairro, os moradores também pedem a construção de estacionamentos comunitários para deixar os carros em dias de chuva e a instalação de sirenes para alertá-los em situações de urgência. No dia 6 de dezembro, a reportagem encontrou um carro com duas rodas completamente submersas em uma das ruas alagadas.
Enquanto o problema das enchentes não é solucionado, moradores seguem em estado de atenção sempre que chove.
A bibliotecária Edilene Santos Nascimento, 39, diz ter se habituado a ficar de olho no córrego que passa próximo de sua casa. Moradora do Jardim Pantanal há três décadas, Edilene já aterrou sua casa pelo menos quatro vezes.
Aterrar a casa, aumentando o nível do solo com entulhos e terra, é uma prática recorrente entre a população local. Quanto mais alto o terreno for, menor a chance de a água entrar nos cômodos.
"Já tem a altura de uma casa e meia aterrada", conta. A bibliotecária defende que o poder público aumente as áreas verdes no Jardim Pantanal e reforça o coro por um sistema de drenagem eficiente.
"Já senti muita raiva [do rio], mas hoje eu não tenho mais", afirma a moradora. Hoje Edilene acredita que a culpa não é do rio Tietê e sim de quem não intervém para melhorar o bairro.
Outro lado
A Secretaria Municipal de Infraestrutura e Obras afirmou que trabalha no planejamento das obras de microdrenagem, pavimentação e macrodrenagem da região para solucionar as ocorrências de alagamento de forma definitiva.
A pasta também afirma que tem feito obras nas margens do Córrego Lajeado, que passa pelo território, e que está construindo cerca de 400 metros de muro de contenção no córrego para evitar transbordamentos. A previsão é que as obras sejam finalizadas ainda este ano.
O DAEE (Departamento de Águas e Energia Elétrica do Estado), órgão responsável pela construção do pôlderes da Vila Itaim e Jardim Romano, afirma que realiza medidas complementares às municipais para auxiliar na drenagem urbana e combate às inundações na região e destacou que o pôlder da Vila Itaim beneficia mais de 10 mil pessoas.
A reportagem questionou a equipe do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) sobre medidas que a futura gestão pretende implementar para ajudar o bairro, mas não obteve resposta até a publicação deste texto.
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