Descrição de chapéu yanomami

'Desritualização' da morte ameaça identidade cultural dos yanomamis

Sepultamento longe da família e circulação de imagens de mortos causam dor aos parentes

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São Carlos (SP)

A crise humanitária nas comunidades yanomamis sob o cerco de garimpeiros gera um tipo de sofrimento que não se resume às mortes por malária e desnutrição. Segundo a visão desse povo amazônico, os membros da etnia que morrem só podem descansar de vez após um ritual funerário longo e complexo, no qual todos os vestígios do morto são apagados, do corpo aos objetos pessoais –o que inclui quaisquer imagens dele.

Por isso, tanto o sepultamento de um yanomami longe de sua família, num cemitério não indígena, quanto a circulação de fotografias e vídeos de indígenas que já morreram causam dor às famílias desses mortos e, segundo a crença do grupo, também aos próprios mortos.

"Isso tem a ver com a ontologia yanomami, com a maneira como eles concebem o que é uma pessoa", explicou à Folha Marcelo Moura Silva, doutorando em antropologia social no Museu Nacional da UFRJ. "Nessa lógica, uma pessoa inclui o corpo físico, uma série de componentes psíquicos, como o pensamento, e também certos componentes imateriais, o que abrange a imagem dessa pessoa."

Território Indígena Yanomami, em Roraima - Amanda Perobelli/Reuters

É comum que os yanomamis fiquem escandalizados ao saber que os não indígenas enterram o corpo inteiro de seus familiares logo após a morte e deixam o cadáver indefinidamente na sepultura. Isso porque as práticas funerárias deles se baseiam na tentativa de produzir uma virtual desintegração do morto e de todos os demais "componentes" dele, incluindo pertences e imagens.

Para atingir esse objetivo, o cadáver é, de início, embrulhado em palhas e colocado em cima de uma árvore num ponto da floresta relativamente distante da aldeia. A ideia é que ele se decomponha até que sobrem apenas os ossos. Depois disso, os ossos são queimados numa pira funerária junto com os objetos pessoais do defunto. As cinzas que restam são colocadas numa cabaça, conforme contam Silva e seu colega Carlos Estellita-Lins em artigo no periódico especializado Horizontes Antropológicos.

No último passo desse processo, e também do período de luto de familiares e amigos, as cinzas podem ser enterradas ou consumidas coletivamente, diluídas num mingau de banana. O nome de quem morreu deixa de ser pronunciado. "É um processo que pode durar anos, no qual essa imagem do morto se transforma num espectro, que eles chamam de ‘pore’ em seu idioma", conta a antropóloga e indigenista Hanna Limulja, autora do livro "O Desejo dos Outros: Uma Etnografia dos Sonhos Yanomami".

Uma vez que todos os ritos sejam realizados devidamente, os "pore" têm acesso a um Além idílico, num lugar cuja tradução é literal é "as costas do céu". "Eles levariam uma vida ideal segundo a cultura yanomami, com festas, fartura e a companhia dos familiares", resume Marcelo Silva.

No entanto, quando as práticas funerárias não são realizadas da forma correta, isso ocasiona não apenas grande desconforto e sofrimento para as pessoas próximas do morto quanto a possibilidade de que ele próprio cause o mal.

"O ‘pore’ tem um caráter ameaçador para os vivos", diz Limulja. "Os efeitos podem ser muito intensos psicologicamente e mesmo fisicamente –as pessoas podem ficar debilitadas e não querer se alimentar, por exemplo", afirma Silva. Se o morto era um xamã, há a crença de que os espíritos auxiliares dele ficam revoltados e também precisam ser apaziguados, sob pena de que ocorra algum cataclisma. "Se não houver uma boa administração da relação com os mortos, corre-se o risco de desandar o próprio ordenamento cosmológico."

As crises que afetaram a população yanomami nos últimos anos, que incluem tanto a situação atual quanto a pandemia, afetaram consideravelmente essas práticas. Por causa do temor em relação à transmissibilidade do vírus da Covid-19 a partir do cadáver das vítimas no início da pandemia, yanomamis que morreram da doença chegaram a ser enterrados longe de suas aldeias e sem os rituais, o que revoltou seus familiares.

"A ‘desritualização’ da morte é um apagamento da identidade cultural dos yanomamis", diz Luciana Costa Normandia, mestra em ciências sociais pela PUC de Minas Gerais e autora de um estudo sobre esse problema durante os primeiros anos da pandemia. "Nesses casos, não podemos pensar nunca por um viés apenas concreto, mas levar em conta a subjetividade dessa população."

Segundo Marcelo Silva, muitos especialistas têm repensado a maneira como lidam com a informação fotográfica ou em vídeo obtida em seu trabalho de campo com a etnia. "Uma colega tem passado a fazer a devolução das fotos para eles. Eu mesmo me policio para fazer imagens em que eles apareçam indiretamente, sem que seja fácil reconhecer a pessoa. É um exercício necessário se a gente está disposto a conversar com essa cultura de modo mais igualitário."

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