Descrição de chapéu yanomami

Empresário descumpriu contrato e deixou Terra Indígena Yanomami sem transporte

OUTRO LADO: Defesa de Rodrigo Cataratas diz que sócio boicotou a própria empresa e que desconhece representação criminal à PF

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Manaus

A empresa contratada para o transporte aéreo de profissionais de saúde e de indígenas yanomamis durante o governo Jair Bolsonaro (PL) descumpriu o contrato, no valor de R$ 7,4 milhões, e deixou de fornecer helicópteros para acesso à terra indígena por pelo menos 14 dias.

No período, houve mortes de crianças na região de Surucucu e fechamento de unidades básicas de saúde no território, em Roraima.

A interrupção dos serviços, os óbitos e o fechamento de postos de saúde se deram em dezembro de 2020, de acordo com um ofício do DSEI (Distrito Sanitário Especial Indígena) Yanomami, que comunicou aos sócios da empresa a aplicação de penalidade em razão do descumprimento do contrato. O ofício foi anexado a um processo judicial de dissolução da sociedade da firma.

Em 2021 e em 2022, a crise humanitária dos yanomamis se agravou, com explosão de casos de malária e de doenças associadas à fome, como desnutrição grave, diarreia aguda, pneumonia e infecções respiratórias. Somente no Hospital da Criança Santo Antônio, em Boa Vista, para onde são levados os pacientes em estado grave, 29 crianças yanomamis morreram em 2022.

Rodrigo Martins de Mello, conhecido como Rodrigo Cataratas, durante protesto a favor do garimpo, em Boa Vista - Victor Moriyama - 12.mai.22/The New York Times

Após a publicação da reportagem, nesta quarta-feira (22), a senadora Eliziane Gama (PSD-MA) enviou requerimento ao Ministério da Saúde para que dê detalhes do contrato. A parlamentar é vice-presidente da comissão externa do Senado que acompanha a crise humanitária do povo yanomami.

"O caso se soma a tantos outros de negligência, omissão e imprudência. O Brasil precisa buscar os responsáveis por aquela tragédia humana na maior terra indígena do país", disse.

A crise sanitária e de saúde na maior terra indígena do Brasil está associada ao avanço do garimpo ilegal de ouro e cassiterita, aceito e estimulado pelo governo Bolsonaro. Mais de 20 mil invasores ocuparam o território, inclusive regiões antes intocadas, próximas à fronteira com a Venezuela. A desassistência em saúde contribuiu para a crise.

Em 20 de janeiro deste ano, o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) declarou estado de emergência em saúde pública na terra indígena. As ações emergenciais seguem em curso.

O contrato para transporte aéreo de profissionais de saúde e indígenas nos dois primeiros anos do governo Bolsonaro foi assinado entre o DSEI Yanomami, vinculado ao Ministério da Saúde, e a Icaraí Turismo Táxi Aéreo.

Um dos sócios da empresa era Rodrigo Martins de Mello, conhecido como Rodrigo Cataratas. O empresário foi denunciado pelo MPF (Ministério Público Federal) em Roraima, em novembro de 2022, pela suspeita de liderar uma organização criminosa que explora o garimpo ilegal na terra yanomami.

Mello, que é bolsonarista e disputou sem sucesso o cargo de deputado federal pelo PL, partido do ex-presidente, é suspeito de operar a logística de parte do garimpo no território. A empresa da qual era sócio atuava formalmente na área de saúde indígena no governo, sendo responsável pelos acessos a uma região isolada da Amazônia brasileira.

Em 2020, o sócio de Mello na Icaraí, Paulo Brittes Martins, ingressou com uma ação na Justiça no Paraná –onde a empresa está sediada– para dissolução da sociedade, em razão de uma série de irregularidades elencadas no curso da ação.

O escritório Bandeira Advogados Associados, que representa Martins, anexou ao processo acusações de furto de dois helicópteros por Mello; de pagamentos indevidos pelo DSEI Yanomami a Mello, em conta bancária distinta da indicada em notas fiscais; e de irregularidades na execução do contrato voltado para saúde indígena.

A defesa de Mello disse, em nota, que a polícia arquivou o caso do suposto furto em 2020 e reconheceu que a aeronave pertencia ao empresário. Sobre irregularidades no contrato com o DSEI e aplicação de penalidade, a defesa afirmou que Martins "passou a boicotar a própria empresa para forçar a retirada de Rodrigo Mello", por deter o "poder de administração nas mãos". O empresário nega explorar garimpo ilegal na terra yanomami.

Uma decisão judicial em junho de 2022 foi favorável a Martins, com determinação de dissolução parcial da sociedade. No último dia 6, o escritório de advocacia que representa Martins protocolou na PF (Polícia Federal) uma representação criminal contra Mello e contra a gestão do DSEI Yanomami responsável pelos supostos pagamentos irregulares.

"A dissolução da sociedade ia acontecer de um jeito ou de outro, os sócios não estavam se entendendo", disse a defesa de Mello. "Rodrigo Mello nunca foi comunicado dessa representação criminal. Se intimado for, prestará os esclarecimentos cabíveis."

A PF disse ter dado encaminhamento ao setor responsável, sem especificar qual.

O mesmo coordenador do DSEI citado na representação fez a comunicação sobre penalidades à Icaraí Turismo Táxi Aéreo, em razão do descumprimento do contrato. A notificação foi feita em 31 de março de 2021, pelo então coordenador Rômulo Pinheiro de Freitas. No mesmo dia, houve a rescisão do contrato, de forma unilateral pelo DSEI.

A penalidade aplicada —impedimento de participar de novas licitações com a União por dois anos e multa de R$ 217,6 mil— levou em conta irregularidades na execução do contrato. A mais grave, conforme o aviso do DSEI, foi a suspensão do fornecimento de helicópteros com a alegação de falta de pagamento, mesmo existindo um saldo de horas de voos a ser cumprido.

No período em que o DSEI ficou desguarnecido de transporte aéreo para saúde indígena, entre 3 e 16 de dezembro de 2020, houve mortes de crianças nas comunidades de Kataroa e Waputha, que ficam na região de Surucucu, conforme a comunicação feita pelo distrito aos sócios da Icaraí. Também houve fechamento de unidades de saúde.

Surucucu é uma das regiões da terra indígena mais impactadas pela crise humanitária e sanitária. Os atendimentos na emergência em saúde se concentram em Surucucu e Auaris, esta última já colada na fronteira com a Venezuela.

O DSEI disse aos sócios da empresa de táxi aéreo que o serviço prestado era essencial para acesso a comunidades isoladas. A interrupção acarretaria paralisação de socorro médico e risco de morte iminente, conforme o distrito.

Outra irregularidade detectada foi a operação de helicóptero sem certificado de operador aéreo, por pelo menos 14 dias, em junho de 2020. O DSEI afirmou não compactuar com prática clandestina de transporte de passageiros.

Em nota, o Ministério da Saúde disse que o descumprimento do contrato é apurado pela Corregedoria-Geral da pasta. "A atual gestão não compactua com esse tipo de postura."

De acordo com o ministério, o Siafi (Sistema Integrado de Administração Financeira) do governo federal faz cruzamento entre CNPJ da empresa e titular das contas bancárias para evitar transferências a terceiros.

A Icaraí foi detentora de contratos para transporte de profissionais de saúde e indígenas de outros territórios. De setembro de 2018 a fevereiro de 2021, a empresa recebeu R$ 30,6 milhões do governo federal.

Rômulo Pinheiro de Freitas foi coordenador do DSEI Yanomami de julho de 2020 a janeiro de 2022. Foi substituído pelo ex-vereador de Mucajaí (RR) Ramsés Almeida da Silva. Os dois chegaram ao cargo por indicação de grupos políticos locais.

Os ex-coordenadores são investigados por PF e MPF (Ministério Público Federal) por suposta fraude em esquema de fornecimento de medicamentos aos indígenas. As casas dos dois e de mais cinco pessoas físicas e jurídicas foram alvos de busca em novembro de 2022. Conforme as investigações, fraudes deixaram 10.193 crianças yanomamis sem assistência contra verminoses.

A reportagem não localizou os ex-gestores do DSEI Yanomami.

Em janeiro, a PF instaurou inquérito para investigar a suspeita de genocídio contra o povo yanomami. Os alvos da investigação são garimpeiros e operadores da logística do garimpo, coordenadores de saúde indígena e agentes políticos.

A defesa de Mello afirmou que o empresário não tem relação com as acusações de genocídio.

"No período em que prestava serviços para saúde indígena, não houve nenhuma denúncia nesse sentido. A desnutrição dos povos indígenas, noticiada em 2023, deve ser apurada, e os responsáveis, responsabilizados perante a Justiça."

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