Descrição de chapéu Quilombos do Brasil

Ameaças de morte e briga com igreja marcam quilombo Pedra do Sal, no Rio

Região onde fica a comunidade no Rio é berço do samba e foi a porta de entrada para pessoas escravizadas

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Público durante samba no quilombo Pedra do Sal, na região portuária do Rio de Janeiro Eduardo Anizelli - 27.fev.23/Folhapress

Rio de Janeiro

Na região portuária do Rio de Janeiro acontece uma das rodas de samba mais tradicionais da cidade. A fama rompeu fronteiras e tornou a Pedra do Sal um ponto turístico da capital fluminense.

O lugar é emblemático para o ritmo, foi lar de Tia Ciata. Na casa dela e nas redondezas o estilo foi ganhando os contornos atuais. Ali surgiu a primeira música do gênero, registrada por Donga.

Mas boa parte de quem circula pela região nem sequer imagina que está em um território quilombola. Durante muitas décadas, no período colonial, aquele espaço no qual hoje fica o bairro da Saúde foi o ponto do maior mercado escravagista do Brasil.

Somente entre 1775 e 1830 chegaram ao local entre 500 mil e 900 mil africanos escravizados. Os seus descendentes, ao longo dos anos, foram criando uma comunidade no entorno.

"O quilombo surge em cima de um tripé: porto, samba e santo. O samba nasce na Pedra do Sal. A primeira casa de santo surgiu em nossa comunidade. E o porto. A lida da minha comunidade é o trabalho no porto", afirmou o portuário Damião Braga, 56, um dos líderes do quilombo Pedra do Sal.

Damião Braga, lider do quilombo Pedra do Sal, que fica na região portuária do Rio de Janeiro - Eduardo Anizelli - 14.fev.23/Folhapress

O local também reuniu pessoas negras libertas e acolheu migrantes negros do pós-abolição, em busca de uma vida melhor na então capital do país. Lá se aquilombaram. Hoje, as famílias remanescentes lutam para manter viva essa história. E também o território.

"Nós éramos 25 famílias. Hoje já não temos mais isso. Ao longo desse período, muitos faleceram, outros desanimaram em função da pressão existente. A nossa questão econômica não gira em função da roda de samba, isso era mais diversão. O nosso ganha-pão é o trabalho do porto, a estiva, os navios", disse Damião.

Mas o caminho não tem sido simples. O quilombo conseguiu o reconhecimento da Fundação Palmares em 2005. Após a certificação, o Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) iniciou a análise antropológica para realizar a titulação do território.

O processo ainda não está concluído, muito por causa de uma briga judicial com uma vertente da Igreja Católica. A Venerável Ordem Terceira Penitência disse ter herdado de dom João 6º os terrenos e que tem direito a eles desde 1821.

O Incra, porém, não encontrou documentos que comprovem a versão da igreja. E a Justiça determinou que a instituição deixe o local.

"Em função de todos os problemas, como esse conflito com a igreja, faz bastante tempo que a gente não produz atividades culturais dentro do território. Se você pegar, o que dá sustentação tanto à ação judicial quanto ao relatório técnico é justamente a questão cultural, as festas que a gente fazia, que a gente deu o nome de Sal do Samba", afirmou Damião.

O próprio Incra, durante o processo de análise antropológica, tomou parte na ação civil pública e requisitou a restituição do terreno.

A Associação Lar São Francisco, que sucedeu a Venerável Ordem, afirmou que desde o começo do caso não se pôs contra o reconhecimento, a preservação e a criação do quilombo, mas não concorda com a perda da propriedade sem desapropriação e pagamento de indenização.

"O Lar sempre cumpriu e respeitou as decisões judiciais. Desde que foi concedida a medida liminar, o Lar permitiu a posse dos imóveis pelas pessoas indicadas. Assim, de forma mais objetiva, há muitos anos os imóveis que faziam parte do processo ajuizado pelo Incra já não estão na posse do Lar", declarou a entidade.

O Incra não disse à reportagem em qual fase está o processo de titulação do quilombo nem o que falta para a regularização definitiva.

Roda de samba no quilombo Pedra do Sal que fica na região portuária do Rio de Janeiro - Eduardo Anizelli-27.fev.23/Folhapress

Além da briga com a igreja, a comunidade convive com ameaças. Damião está longe da Pedra do Sal há anos e troca de residência com frequência para evitar represálias. Ele reputa as ameaças que sofre à busca da regularização do território.

Damião e seus advogados, entretanto, não disseram diretamente de quem parte as ameaças de morte. Mas, segundo ele, existem diversos interessados nos terrenos do quilombo. A região, por exemplo, enfrenta problemas com o tráfico de drogas.

"A própria comunidade, hoje, não tem o direito de usar seu território. Eu estou fora do quilombo Pedra do Sal. É em 2010 que começam [as ameaças]. Desde 2015, estou no programa de proteção aos defensores de direitos humanos. Mas na verdade é um programa que é muito no papel. Muita falação, mas pouca ação concreta. A gente acaba ficando por nossa conta e risco."

Pós-abolição

O quilombo Pedra do Sal fica em um local conhecido como Pequena África, apelido dado pelo sambista Heitor dos Prazeres no começo do século passado. Remete à grande quantidade de pessoas negras na região.

Saídos em especial da Bahia após a abolição, estabeleceram-se nos entornos da Pedra do Sal, local que já contava com grande quantidade de ex-escravizados. Os atrativos? Moradia barata, presença da comunidade negra e a proximidade com o porto.

Mas a Pequena África também remete ao trágico histórico daquele pedaço de Rio de Janeiro. A região foi a porta de entrada para a maioria das pessoas escravizadas que chegaram ao país. Dali, eram enviados para o resto do Brasil.

"A Pedra do Sal não tem as características geográficas hoje que fazem a pessoa olhar e entender isso. Mas o mar ia até o largo da prainha e, na Pedra do Sal, desembarcavam e embarcavam sacas e mais sacas de sal", disse Leandro Santanna, diretor-geral do Museu da História da Cultura Afro-brasileira, que fica também na região.

Era ao local que chegava o sal vindo de Portugal, único fornecedor autorizado no Brasil naquele momento do período colonial.

O Valongo é o porto das Américas que mais recebeu africanos escravizados. É um lugar que ficou marcado nas pedras a história de um povo que passou por um processo de desumanização muito grande

Leandro Santanna

diretor-geral do Museu da História da Cultura Afro-brasileira

Na mesma área da Pedra do Sal também ficava o Cais do Valongo. A escolha desse lugar para o estabelecimento de um mercado de escravizados ocorreu por se tratar, na época, de uma localização afastada da parte principal da cidade, isolada dos outros bairros pela posição entre morros.

Toda a logística escravagista ficou concentrada nesse espaço: o porto, por onde chegavam as pessoas trazidas da África; os espaços em que os africanos se recuperavam da viagem insalubre; o mercado de venda dos escravizados para outros estados; e o cemitério para os que não resistiam a esse processo.

Depois de dez anos de escavações arqueológicas que começaram em 2011, em função da construção do Porto Maravilha, é que veio à tona o Cais do Valongo.

A região recebeu o título de Patrimônio Cultural da Humanidade pela Unesco em 2017 por seu "valor universal excepcional" como único exemplar íntegro e autêntico que expressa a história de diáspora africana no Brasil.

"O Valongo é o porto das Américas que mais recebeu africanos escravizados. É um lugar que ficou marcado nas pedras a história de um povo que passou por um processo de desumanização muito grande", afirma Leandro Santanna.

Para Damião Braga, o quilombo Pedra do Sal representa a continuidade e a manutenção de toda essa história.

Hoje, a roda de samba realizada no local não tem mais uma ligação direta com os quilombolas, embora, segundo alguns de seus atuais integrantes, proponha-se a conservar a história do samba e da resistência negra.

"As pessoas falam da Pedra do Sal, mas invisibilizam a comunidade quilombola. Não é a Pedra do Sal, é a comunidade remanescente do quilombo Pedra do Sal. O que é bem diferente", ressaltou Damião.

O projeto Quilombos do Brasil é uma parceria com a Fundação Ford

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