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Indígenas guerreiras defenderam território da Amazônia diante das invasões

Lideradas por Conhori, elas formaram sociedade matriarcal dotada de leis próprias

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Eliane Potiguara

Escritora e ativista indígena, recebeu o título de doutora honoris causa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

Rio de Janeiro

Em 2008, o arqueólogo norte-americano Michael Heckenberger publicou na revista científica Nature um estudo sobre os vestígios de um "urbanismo amazônico pré-colombiano" na região do Alto Xingu, com centros cerimoniais ligados por estradas.

Descobertas como essa comprovam a existência de sociedades complexas no continente americano muito antes das invasões portuguesas e espanholas, narradas em relatos dos primeiros viajantes ligados ao processo colonizador.

É o caso da obra "Descubrimiento del Rio de las Amazonas", do frei dominicano Gaspar de Carvajal (1504-1584), que acompanhou a viagem do grupo comandado pelo colonizador espanhol Francisco Orellana. A expedição partiu do Peru em 1541 e chegou ao rio Amazonas, chamado de rio Grande na época, em 12 de fevereiro de 1542.

Ilustração feita com traços e hachuras pretos mostra uma indígena segurando um arco com uma flecha armada. Ela está aparece da cintura para cima, de costas, com o arco apontado para a direita da cena. Os cabelos são longos e formam uma trança comprida. Na orelha, um brinco de pena. No ombro, escorrendo pelas costas e peito, está um tecido vermelho. Na mão que segura o arco ela tem uma espécie de amuleto. ao fundo, compondo a paisagem, uma árvore encobre a lua cheia, pássaros e estrelas povoam o céu. Mais ao fundo, uma leve silhueta mostra uma aglomeração de outros indígenas.
Representação das Icamiabas, guerreiras que mantinham uma sociedade matriarcal na região da Amazônia pelo menos até o século 16 - Mariana Waechter

Data desse período o primeiro registro do encontro dos espanhóis com indígenas, especialmente com as temidas Icamiabas, guerreiras lideradas por Conhori.

Carvajal conta que elas viviam a "sete jornadas" da costa, no interior da região da Amazônia, divididas em 70 aldeamentos com construções de pedra próximas às estradas, possibilitando que exigissem pedágio de quem passasse por ali. Era uma sociedade matriarcal dotada de leis próprias, com mulheres indígenas que conviviam entre si, reverenciavam a lua como manifestação da Deusa Mãe e adoravam o sol.

Segundo o frei dominicano, "quando lhes vinha o desejo, faziam guerra a um chefe vizinho, trazendo prisioneiros, que libertavam depois de algum tempo de coabitação". Para isso, as Icamiabas lideradas por Conhori realizavam uma festa anual, a Festa da Vitória.

De acordo com o naturalista João Barbosa Rodrigues (1842-1909), em noite de lua cheia, Conhori e as Icamiabas iam para as margens do lago sagrado Yaci-Uarua para retirar dele o barro verde e esculpir um muiraquitã, um artefato com qualidade de amuleto que era entregue aos homens escolhidos depois do ato sexual. Após o parto, elas deixavam os meninos com os pais e ficavam com as meninas, criando elas para as guerras em defesa do território.

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Muiraquitã no Museu de Arqueologia da USP - Alberto Rocha - 22.mar.2018/Folhapress

Carvajal relatou o violento encontro do grupo dele com as Icamiabas em junho de 1542: "Aqui estivemos por um triz para perder-nos todos [...]. Andou-se neste combate mais de uma hora, pois os índios não perdiam o ânimo, antes pareciam que o redobravam [...]. O motivo é que se os indígenas não combatessem os colonizadores, eles seriam castigados por Conhori, pois são súditos e tributários das amazonas (Icamiabas)".

As Icamiabas eram chamadas de amazonas, termo que significava "privadas do seio" ou que "não foram amamentadas".

Um indígena capturado pelos colonizadores esclareceu o motivo do nome ao descrevê-las como mulheres altas, com cabelos longos. "Andam nuas em pelo, tapadas as suas vergonhas", disse ele, e "não tinham mais de um seio", referindo-se à vestimenta que usavam para a guerra, uma manta que cobria um dos seios para que pudessem carregar arco e flecha.

O conflito terminou com os colonizadores matando oito Icamiabas, provavelmente Conhori entre elas. Carvajal escreveu que esse massacre foi a "razão pela qual os índios afrouxaram e foram vencidos e [desbaratados] com farto dano de suas pessoas".

A resistência das indígenas em relação à exploração colonial deu nome ao principal rio da região, o Amazonas, e seus feitos são contados até hoje por gerações de indígenas em defesa de suas nações e seus territórios, com lutas por direitos e contra a atuação do garimpo ilegal. Mas muitos ainda questionam essa história e a ancestralidade da nossa luta.

A partir de meados do século 19, muita tinta foi gasta pelos sócios do Instituto Histórico e Geográfico do Brasil (IHGB), fundado em 1838, para apagar a força das Icamiabas. Pensavam a história do país a partir da invasão portuguesa, que passou a ser chamada de Descobrimento do Brasil.

A estratégia adotada por eles foi questionar a veracidade do relato de Carvajal. Dois livros deram início a esse processo de negação: "A Estátua Amazônica: uma Comédia Arqueológica", publicado em 1848 pelo diretor da seção de arqueologia do IHGB, Manuel Porto Alegre, e "Viagem pelo rio Amazonas: Cartas ao Mundus Alter", obra de 1864 do poeta Gonçalves Dias.

Por que até hoje o relato de Carvajal é considerado verídico quando trata dos feitos dos colonizadores e mítico quando aborda as resistências?

Arrisco uma resposta: a cerimônia que Conhori e as Icamiabas realizavam é a nossa atual Marcha das Mulheres Indígenas, com cada uma de nós carregando o sagrado e a força da luta das Icamiabas. Somos todas raízes fincadas na terra, defendemos nossos territórios, nossos corpos e, assim, contribuímos para a "Cura da Terra" para as novas gerações.

Mátria Brasil terá publicações semanais

O projeto Mátria Brasil, que tem início com esse artigo de Eliane Potiguara, vai retratar mulheres relevantes ao longo da história do país, desde a invasão portuguesa até os dias de hoje.

Os textos serão assinados por algumas das mais importantes historiadoras e escritoras brasileiras, e terão publicação semanal ao longo de seis meses.

A série foi idealizada por Patrícia Valim, professora do departamento de história da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Valim também é uma das coordenadoras do projeto.

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