Descrição de chapéu Governo Bolsonaro

Bolsonaro recua e anula texto que dá margem a erros em livros didáticos

Ministro da Educação afirma que versão publicada é de responsabilidade da gestão Temer

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Brasília

O governo Bolsonaro recuou sobre mudanças no edital para compra de livros didáticos que havia deixado de exigir das editoras referências bibliográficas e o compromisso com a agenda da não violência contra as mulheres, promoção das culturas quilombolas e dos povos do campo. 

O Ministério da Educação do novo governo divulgou nota afirmando que as alterações eram de responsabilidade do governo Michel Temer. A explicação é negada pelo ex-chefe da pasta.

No início da noite, o presidente, Jair Bolsonaro (PSL), foi mais uma vez ao Twitter e colocou a culpa no governo anterior. "A referida medida foi feita pelo governo anterior e corrigida por nós", escreveu. 

As alterações no edital do PNLD (Programa Nacional do Livro Didático) 2020 constam em nova versão publicada no dia 2 de janeiro. O documento serve de referência para que as editoras produzam as obras didáticas e as apresente para avaliação do governo. 

A publicação pelo governo Bolsonaro de uma revisão do edital dos livros foi revelada pela Folha nesta quarta-feira. O jornal mostrou que a medida suprimiu trechos, como o compromisso com a agenda da não violência contra as mulheres e a promoção das culturas quilombolas e dos povos do campo. O jornal O Estado de S. Paulo, em seguida, mostrou que uma das mudanças se referia à exclusão da exigência das referências bibliográficas. 

O ministério da Educação de Bolsonaro divulgou nota no início da tarde de quarta-feira, após a publicação da reportagem e repercussão negativa. A Folha pediu esclarecimentos ao MEC na tarde de terça-feira (8).

Segundo a Folha apurou, a equipe de transição de Bolsonaro acompanhou todos os últimos atos da pasta. Houve 17 encontros e o processo de transição começou no dia 3 de dezembro. A data do documento retificado é de 28 de dezembro, quando a equipe de Bolsonaro trabalhava dentro do MEC.

O foco em materiais didáticos será uma diretriz do governo para tirar do papel o combate a supostas doutrinações de esquerda na educação, bandeira de Bolsonaro.

ex-ministro da Educação Rossieli Soares Silva negou que sejam de autoria do governo Temer as alterações do edital. "Nossa gestão nunca discutiu essas questões. Na verdade, em retificações anteriores deixamos mais claras questões como relacionadas às mulheres", disse o ex-ministro à Folha. "Todos os atos a partir do dia 1º de janeiro são de responsabilidade do novo governo". 

Silva encaminhou à reportagem arquivo com as alterações pedidas por sua equipe ao edital e que não incluem os trechos polêmicos. São 14 alterações de redação de trechos, principalmente sobre regras para desclassificação de obras que não tivessem arquivos de áudios.

Em nota, o atual ministro da Educação, Ricardo Vélez Rodríguez, informou que vai suspender a versão do edital. "O MEC reitera o compromisso com a educação de forma igualitária para toda a população brasileira e desmente qualquer informação de que o Governo Bolsonaro ou o ministro Ricardo Vélez decidiram retirar trechos que tratavam sobre correção de erros nas publicações, violência contra a mulher, publicidade e quilombolas de forma proposital", diz a nota.

Na versão anterior do edital, a orientação para as editoras, com relação a princípios éticos necessários, é que as obras promovessem "positivamente a imagem da mulher, considerando sua participação em diferentes trabalhos, profissões e espaços de poder, valorizando sua visibilidade e protagonismo social, com especial atenção para o compromisso educacional com a agenda da não violência contra a mulher". 

Já na versão do dia 2, o último trecho sobre a atenção especial à agenda da não violência contra a mulher foi suprimido. Os livros deveriam ainda "promover positivamente a cultura e a história afro-brasileira, quilombola, dos povos indígenas e dos povos do campo". 

O MEC excluiu desse trecho as menções às palavras quilombola e povos dos campos. Ainda havia sido suprimido trecho que exigia livros sem erros de revisão e ou impressão.

A reportagem identificou ao menos dez alterações no documento, que mantém, no geral, o mesmo conteúdo original. Há orientação para que os livros estejam livres de preconceitos sobre orientação sexual ou gênero que foi mantido, por exemplo.

Depois da repercussão do tema, representantes de editoras pediram esclarecimentos ao governo. "Rcebemos com surpresa no edital, particularmente pelo fato de que as obras já foram entregues no final de novembro", diz ela. 

O edital serve de referência para que as editoras produzam as obras didáticas e as apresente para avaliação do governo, que as escolhe com base nesse texto. As editoras já encaminharam ao MEC todas as obras em novembro. Na última edição do PNLD para os anos finais, em 2017, o governo comprou 153 milhões de livros e investiu R$ 1,47 bilhão. Foram beneficiados 31 milhões de estudantes.

O foco nos livros didáticos como forma de combate a supostas doutrinações de esquerda tem sido articulado desde antes da posse do presidente e do ministro Vélez Rodriguez. Um dos colaboradores do movimento Escola sem Partido que faz análises de supostas irregularidades em livros didáticos integrou a equipe oficial da transição da pasta.

A transição começou no dia 3 de dezembro. Foram realizadas 17 reuniões. O professor goiano Orley José da Silva deve ser nomeado para um cargo no MEC, ainda não definido. Religioso e conservador, Silva é doutorando em ciências da religião em Goiás. Em seu blog, Silva afirma, por exemplo, que a questão quilombola é uma pauta do PT. 

O próprio Bolsonaro já fez ataques a comunidades e membros quilombolas. "Eu fui num quilombo. O afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Não fazem nada. Eu acho que nem para procriador ele serve mais", disse o agora presidente da República. 

O governo já determinou a suspensão de cerca de 1,7 mil processos para identificação e delimitação de territórios quilombolas.

Sob o título "Livros do MEC de Temer poderão engessar ações didáticas do MEC de Bolsonaro", Silva relativiza a escravidão de negros e o genocídio de indígenas na colonização. Ele critica obras que chegam no ano que vem às escolas por apresentar a escravidão “como um ato desumano exclusivo da elite branca eximindo as comunidades africanas que escravizam sua própria gente". 

A partir da reprodução de páginas de livros, ele afirma que as obras insistem na questão indígena, "como se os europeus não tivessem oferecido nada de bom aos índios, nem mesmo educação." 

Uma das prioridade da nova equipe à frente do Ministério da Educação é o combate ao chamado marxismo cultural, o globalismo e “ideologia de gênero”, termo esse nunca usado por educadores. 

Ao tomar posse como ministro da Educação, Vélez Rodríguez exaltou em discurso a família, igreja e valores tradicionais. Os livros didáticos são muitas vezes as únicas ferramentas pedagógicas de apoio aos professores. Em cidades mais pobres, em que secretarias de Educação têm pouca estrutura, essa realidade é ainda mais forte.

Para o coordenador da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Daniel Cara, a exclusão desses temas do edital do livro didático seria preocupante. "A educação é também uma política de construção da identidade nacional. Parte fundamental da construção nacional é a capacidade reconhecer a diversidade", diz. 

"Em relação à violência contra a mulher, o governo nega problemas estruturais fazendo relativismo histórico e suprimindo temas que existem no dia a dia. A função da escola é mostrar que violências são atitudes equivocadas mas também servir de alerta para questões que podem acontecer no cotidiano das crianças."

Veja os pontos que foram alterados

Referências bibliográficas
O edital deixou de exigir das editoras referências bibliográficas que apoiem a estrutura editorial dos livros

Violência contra as mulheres 
Nova versão suprimiu trechos relativos ao compromisso educacional com a agenda da não violência contra as mulheres

Quilombolas
Também foi removida orientação para promoção das culturas quilombolas e dos povos do campo

Diversidade 
Orientação para que ilustrações presentes no material didático retratassem “a diversidade étnica da população brasileira, a pluralidade social e cultural do país” foi removida

Propaganda 
Veto à propaganda nos livros didáticos foi removido. Não fica claro se a publicidade tradicional seria autorizada ou apenas o uso de textos publicitários em atividades educacionais. A publicidade em material didático é vetada por resolução do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente 

Erros
Trecho que exigia livros sem erros de revisão ou impressão foi retirado 

Entenda o edital

O que é o edital do Programa Nacional do Livro Didático?
O edital serve de referência para que as editoras produzam livros didáticos, que serão avaliados pelo governo. Uma comissão técnica do MEC seleciona uma lista de livros, que é levada às redes e escolas para que possam escolher quais obras adotarão no ano letivo. Também inclui os livros literários que serão trabalhados em sala de aula.

Quando os livros selecionados pelo edital em questão chegarão às escolas?
Em 2020. Contudo, as editoras já haviam enviado os livros para avaliação do MEC em novembro. As mudanças feitas pela gestão atual foram publicadas em 2 de janeiro. 

Os livros atenderão a que séries? 
As obras serão usadas por alunos do 6º ao 9º ano do ensino fundamental.

O que disse o MEC? 
Em nota, o ministério disse que a versão do edital, publicada no segundo dia de governo do Bolsonaro, é de responsabilidade da gestão Michel Temer e que as alterações serão anuladas. 

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