Biografia de Capanema revela ministro da 'modernização conservadora' da Era Vargas

Mediador decisivo entre o regime ditatorial varguista e o modernismo, esteve à frente da pasta da educação por 11 anos

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São Paulo

Na espiral da história em que o Brasil parece às vezes girar em falso, é providencial a publicação da biografia de Gustavo Capanema Filho (1900-1985), o mais longevo ministro da Educação do país, também conhecido como "pai do MEC".

O livro de estreia do jornalista e historiador Fábio Silvestre Cardoso retrata um animal político capaz de atrair intelectuais do peso de Carlos Drummond de Andrade, Mário de Andrade, Villa Lobos, Cândido Portinari e Sérgio Buarque de Holanda para um regime totalitário. E que, apesar da atuação em momentos-chave da história brasileira do século 20, é, ironicamente, um desconhecido do público.

O autor ressalta que Capanema sequer é lembrado nos arquivos da Faculdade de Direito de Minas Gerais, da qual é seu mais ilustre aluno, tendo sido, ao longo de 50 anos de serviço público, ministro do Interior de Minas, ministro da Educação e Saúde, e parlamentar na Câmara e no Senado.

Gustavo Capanema, ministro da Educação da Era Vargas
Gustavo Capanema, ministro da Educação da Era Vargas - Folhapress

Para contornar essa lacuna, Silvestre Cardoso entremeia a vida pública do mineiro com o pano de fundo da turbulência política que acompanhou sua trajetória —uma sequência de perturbações que, à luz da político atual, não dá para chamar de coisa do passado. 

O livro é dividido em três partes. A primeira delas é dedicada à ascensão de Capanema à vida pública, da Pitangui natal, no interior de Minas Gerais, à capital, Belo Horizonte, onde os primeiros estudos numa escola alemã o tornariam um germanófilo profundamente católico. 

Na faculdade, se filiou ao grupo conhecido como "intelectuais da rua da Bahia", do qual o maior expoente era o poeta autor de "A Rosa do Povo". 

Drummond (1902-1987), seu grande amigo, viria a ser seu chefe de gabinete no ministério ao longo dos 11 anos em que Capanema esteve na pasta, de 1934 a 1945 —período de que se ocupa a segunda parte do livro.

Segundo Silvestre Cardoso, a ligação do político mineiro com a Igreja Católica teve peso decisivo para a indicação de Capanema ao ministério de Getúlio Vargas. A nomeação teria se dado sob a influência do crítico literário Alceu Amoroso Lima, definido pelo autor como uma espécie de lobista da igreja junto ao governo.

Os católicos tinham interesse numa série de emendas na pasta e se contrapunham à chamada Nova Escola, que tinha em Anísio Teixeira sua maior expressão. Vargas, por outro lado, queria o apoio institucional da Igreja Católica a seu governo.

No Estado laico brasileiro, religião e política se misturavam naquela época tanto quanto hoje. Basta lembrar que, meses atrás, a bancada evangélica vetou o primeiro nome cotado pelo presidente Jair Bolsonaro para a pasta da educação de seu governo: Mozart Ramos, diretor do Instituto Ayrton Senna.

À frente do Ministério da Educação e Saúde (MES), Capanema nacionalizou o ensino, esvaziando esforços estaduais, ao mesmo tempo em que negligenciou a educação primária. Perseguiu os imigrantes japoneses, italianos e alemães que ensinavam suas línguas maternas aos filhos. Retomou o ensino religioso nas escolas e atendeu aos pedidos do mentor e amigo Amoroso Lima, que expressou em carta sua preocupação com "a infiltração crescente do comunismo em nosso meio".

Na espiral da história, qualquer semelhança com os tempos atuais talvez não seja mera coincidência.

Tachado, ao final do regime, de ministro da "deseducação (num trocadilho que se repete com outros personagens até hoje), Capanema foi exímio articulador cultural num tempo em que a Cultura ainda não constava da nomenclatura da pasta. 

Criou, porém, órgãos que viriam a se mostrar importantes para a institucionalização e transmissão da cultura, como o que viriam a ser o Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) e o Instituto Nacional do LIvro. Fundou ainda o Museu Nacional de Belas-Artes e uma série de órgãos ligados ao cinema, ao rádio e ao teatro.

O ministro da Educação Gustavo Capanema (de chapéu) dá entrevista a repórter.
O ministro da Educação Gustavo Capanema (de chapéu) dá entrevista a repórter. - Reprodução

Descrito como "um moralista à brasileira", Capanema "viveu no limite da conciliação", exercendo o "poder na sua plenitude" de maneira pragmática e, por vezes, paradoxal.

Flertava com o fascismo ao mesmo tempo em que atuava como mecenas do modernismo nas artes plásticas e na arquitetura. 

Essa aparente contradição faria de Capanema um mediador decisivo entre um regime político ditatorial e um movimento cultural de vanguarda. Em uma das leituras feitas sobre essa relação, os artistas foram cooptados por um governo totalitário que os financiava para poder utilizar a construção da imagem de um Brasil moderno como propaganda política da Era Vargas. 

Outra interpretação sugere que os artistas, por meio da influência de Drummond no gabinete ministerial, almejavam subverter o governo conservador por dentro dele mesmo, instrumentalizando-o em favor de um movimento até então vanguardista tanto quanto marginal.

O grande ícone desta relação foi o Palácio Capanema. Para a construção da nova sede do MES, Capanema ignorou o resultado de um concurso público vencido por Archimedes Memória, diretor da Escola Nacional de Belas-Artes, ligado ao Partido Integralista. 

No lugar, contratou Lúcio Costa (1902-1998), que criaria um dos marcos da arquitetura moderna brasileira, sob consultoria de Le Corbusier (1887-1965) e junto a equipe em que sobressaia o então estagiário Oscar Niemeyer (1907-2012).

A escolha rendeu ao ministério de Capanema a acusação de incentivar um clã comunista sob a batuta de Drummond.

O edifício, quando pronto, recebeu mural de Portinari (1903-1962) e paisagismo de Roberto Burle-Marx (1909-1994).

O Palácio Capanema começou a ser construído em 1936, tendo sido concluído apenas em 1943, dois anos antes de Getúlio Vargas cair e, com ele, seu ministro.

Silvestre Cardoso escreve que Capanema se "adequava ao figurino das circunstâncias". E, na terceira e última parte do livro, descreve como o político mineiro seguiu sua carreira pública entre a constituinte de 1946 e o apoio ao golpe militar de 1964, sempre às voltas com o poder da vez. 

Escritor frustrado, perdeu a eleição para uma cadeira da Academia Brasileira de Letras em 1980, cinco anos antes de morrer. Entrou timidamente para a história como o motor da chamada "modernização conservadora" do Brasil.


Capanema
Autor Fábio Silvestre Cardoso
Editora Record (420 págs.)
Quanto R$ 64,90

Erramos: o texto foi alterado

O nome do autor do livro é Fábio Silvestre Cardoso, e não Silvério Barroso. O texto foi corrigido.

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