Descrição de chapéu Palavra Aberta

Falta de infraestrutura não é desculpa para não discutir educação midiática

A ideia de que o tema só pode constar no currículo com banda larga e computadores é um mito

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Você certamente já ouviu o termo “nativo digital”, amplamente empregado para nos referirmos às gerações que nasceram em um mundo permeado pelas redes sociais e repleto de telas. Mas essa expressão esconde uma “pegadinha”: ela dá a ideia de que, por simplesmente nascerem em uma sociedade conectada, as crianças e os jovens teriam as habilidades necessárias para compreendê-la, sendo naturalmente capazes de ler e interpretar todas as informações a que têm acesso. 

Tal engano fica evidente em um trecho de um estudo do Stanford History Education Group, grupo de pesquisa da renomada Universidade de Stanford, dos EUA: “Nossos ‘nativos digitais’ podem ser capazes de percorrer o Facebook e o Twitter enquanto carregam uma selfie para o Instagram e enviam mensagens de texto para um amigo. Porém, quando se trata de avaliar conteúdos que fluem através dos canais de mídia social, eles são facilmente enganados”.

Mão segura uma série de cartões em leque
Deck de cartões do Educamídia - Michell Santana

Ou seja, em linhas gerais, o que vemos hoje é que as tecnologias digitais deram velocidade e alcance maiores aos fluxos de informação, o que reforça a urgência da educação midiática como parte importante dos currículos escolares. Contudo, o que precisa ficar claro é que o desenvolvimento dessas habilidades não depende diretamente de uma ótima infraestrutura escolar, com computadores e tablets de última geração, lousas digitais e conexão rápida. Quando falamos do impacto da tecnologia na vida em sociedade, não estamos nos referindo somente ao manuseio dos aparelhos e equipamentos em si, mas sim à compreensão de seu propósito, efeitos e consequências para as formas como lemos, interpretamos e compreendemos o mundo.

O censo escolar 2018 do Ministério da Educação (MEC) mostra que temos 82% dos mais de 48,5 milhões de alunos da educação básica matriculados em escolas públicas, e são justamente essas unidades que mais sofrem com a infraestrutura precária. Os dados revelam também que 61% delas contam com conexão de banda larga - o que não significa que isso esteja disponível para o uso dos estudantes - e 38% apresentam laboratório de informática em suas dependências.

Por outro lado, o Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) apontou, na TIC Kids Online Brasil 2017, que oito em cada dez crianças e adolescentes entre 9 e 17 anos navegam na internet com frequência, e que 76% usavam a rede para realizar trabalhos escolares. Já de acordo com a PNAD Contínua TIC 2017, do IBGE, o percentual de lares brasileiros com internet alcançou 74,9%, e a taxa de domicílios com ao menos um telefone celular chegou a 93,2%.

Esses dados servem para demonstrar que esperar que todas as escolas brasileiras sejam devidamente equipadas para só então implementarmos noções de educação midiática nos projetos pedagógicos não é uma opção viável. Se queremos uma sociedade mais ética, cidadã e responsável, precisamos começar agora - afinal, o tempo passa rápido, tudo muda velozmente e os estudantes não podem ser negligenciados. Ainda que eles não tenham contato com algum tipo de tecnologia digital nas aulas, fora delas eles estarão expostos ao turbilhão de informações e conteúdos típicos do momento em que estamos vivendo. 

A própria etimologia da palavra “tecnologia” nos indica isso: ela é uma junção dos termos gregos “tekhne”, que significa técnica, arte ou ofício, e “logos”, que pode ser interpretado como “conjunto dos saberes”. A educação midiática nada mais é do que um conjunto de saberes que pressupõem adotar uma postura reflexiva diante de todas as informações que recebemos, das imagens que vemos, das embalagens de produtos que consumimos, entre outros - por isso não é algo só ligado ao digital.

E o professor, como fica diante desse contexto? Sabemos que as dificuldades são muitas, e ultrapassam a falta de recursos. Mas as possibilidades também são variadas. Um depoimento do professor Renato Hendrigo, que participou em setembro da primeira formação de multiplicadores do EducaMídia, programa de educação midiática do Instituto Palavra Aberta, é um bom exemplo. A escola onde ele leciona, em Goiânia (GO), fica na periferia, não tem computadores ou acesso à internet, e os alunos não têm celular ou não são autorizados a levá-lo para a sala de aula. Mesmo assim, dias após o encontro, ele desenvolveu uma atividade com a turma que consistia em utilizar mensagens que estavam circulando em grupos de Whatsapp. Os textos foram impressos e colados em cartolinas, e os educandos deveriam avaliar se as informações eram verdadeiras ou falsas. Isto é: de uma maneira completamente analógica, o educador conseguiu fazê-los refletir sobre a disseminação de informação. 

O próprio kit de cards desenvolvido pelo EducaMídia, como parte dos materiais gratuitos fornecidos pelo programa, também serve de exemplo. Os cartões objetivam justamente introduzir diversos temas atuais sem a necessidade de acesso à internet, e podem ser baixados e depois impressos para uso em sala de aula. Cada um traz um assunto contemporâneo, que faz parte do universo dos jovens - como discurso de ódio, influenciadores digitais e bolha informacional, para citar alguns -, juntamente a perguntas disparadoras de conversa para incentivar a discussão entre professores e turma. 

Essas são apenas algumas ideias práticas entre várias outras que já acontecem nas salas de aulas Brasil afora. Os educadores precisam ter em mente que os jovens podem entender bem o funcionamento das redes sociais e dos aparelhos digitais, pouco sabem, porém, sobre as possibilidades, efeitos e impactos que eles têm nas suas vidas. O papel dos docentes é justamente apoiar e orientar seus estudantes nessa trilha de aprendizados.

A educação midiática não é uma questão de informatizar processos, e sim de de humanizá-los, empoderando crianças e jovens para que sejam autônomos na cultura digital. É uma missão e tanto, mas que só pode ser desempenhada pelos professores e educadores de todas as redes de ensino do País.

Mariana Mandelli

Coordenadora de comunicação do Instituto Palavra Aberta

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