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Por que discurso de ódio é assunto de escola

Crianças e jovens precisam discutir como liberdade de expressão e respeito ao próximo caminham juntos

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Imagine o seguinte: você curte uma página no Facebook sobre a sua cidade. Em uma das postagens publicadas, há a informação de que existe uma mulher raptando crianças para “realizar magia negra” em um bairro próximo. O texto é acompanhado por uma foto e um retrato falado que supostamente seriam da tal mulher, apesar de não parecerem representar a mesma pessoa.

O boato ganha força por uns dias, até que moradores avistam uma mulher parecida com a “sequestradora” e, sem aviso, começam a agredi-la. 

O espancamento é gravado por celulares e os vídeos, publicados em sites variados. As imagens mostram, entre cenas brutais de socos e chutes, a “bruxa” sendo amarrada e arrastada pelas ruas, ao som de gritos e xingamentos. Resgatada e levada a um hospital, ela não resiste e morre por conta da gravidade dos ferimentos. 

Parece inacreditável? Sim, mas aconteceu no Guarujá, litoral do Estado de São Paulo. Em 2014, um boato espalhado em redes sociais motivou o assassinato de Fabiane Maria de Jesus, uma dona de casa de 33 anos, mãe de duas filhas. À época, a polícia concluiu que não havia nenhum registro de sequestro de crianças na região. A foto e o retrato falado realmente não eram da mesma pessoa, e nenhuma das duas sequer se parecia fisicamente com Fabiane.

Nenhum dos agressores da vítima procurou autoridades ou qualquer tipo de fonte confiável para saber se o que foi publicado online era verdadeiro: todos decidiram pelo ódio. 

As ameaças incutidas na mentira que matou Fabiane podem ser classificadas como discurso de ódio, termo bastante debatido nos últimos anos e que pode ser caracterizado como tom ameaçador, abusivo ou preconceituoso, muitas vezes adotado contra um grupo específico de pessoas. Tais conteúdos costumam incitar a violência verbal e física contra esses segmentos sociais, motivada por questões de raça, etnia, gênero, orientação sexual, religiosa ou origem nacional. 

No mundo online, esse tipo de discurso encontra abrigo especialmente em fóruns de difícil acesso, onde é complicado rastrear os autores e o anonimato é, portanto, quase garantido. Crimes e tragédias recentes que horrorizaram o Brasil, como o ataque à escola estadual Raul Brasil, em Suzano (SP), foram discutidos – e comemorados explicitamente – nessas comunidades virtuais. 

Mas nem todo discurso de ódio está “escondido” na internet. Ao contrário: nos últimos 13 anos, a Central Nacional de Denúncias de Crimes Cibernéticos da Safernet Brasil recebeu mais de 4 milhões de denúncias desse tipo, como páginas, sites e outros conteúdos que fazem apologia à violência contra minorias. Ou seja: não é preciso ir tão longe para encontrar exemplos de postagens com ameaças e hostilidade.  

É recorrente termos contato com comentários que disseminam preconceitos diversos nas nossas próprias redes sociais, entre avatares de conhecidos e pessoas próximas. Ainda que não provoquem vítimas fatais, essas mensagens podem gerar constrangimentos, difamar reputações ou simplesmente causar mágoa.

Um meme enviado pelo WhatsApp, um tweet postado por uma conta supostamente humorística ou um vídeo de um influenciador digital muitas vezes expressam livremente discriminações como racismo e xenofobia, e alcançam milhões de pessoas – entre elas, crianças e jovens em idade escolar. 

O mais influente YouTuber do planeta é o melhor exemplo disso. O sueco Felix Kjellberg, de 30 anos, mais conhecido como PewDiePie, tem um canal com 100 milhões de inscritos, cujo público massivo é composto por jovens com menos de 25 anos. Seus vídeos ganharam grande repercussão quando seus comentários sobre mulheres, muçulmanos e judeus extrapolaram o aceitável e demonstraram misoginia e intolerância religiosa.

Um episódio muito mais grave, porém, estava por vir: em março deste ano, um nacionalista na cidade de Christchurch, na Nova Zelândia, fazia uma transmissão pelo Facebook quando disse “Inscreva-se no canal PewDiePie” e, em seguida, adentrou uma mesquita armado. O ataque provocou a morte de 51 pessoas. Apesar de não haver uma relação direta entre o atirador e Kjellberg, após o incidente, o YouTuber acabou excluindo todos os seus vídeos que continham falas odiosas. 

É recorrente ouvirmos que comentários preconceituosos e ofensivos devem ser aceitos pois se tratam do pleno exercício da liberdade de expressão, assegurada na nossa Constituição como direito fundamental do ser humano de manifestar e compartilhar suas opiniões e ideias sem temer retaliação ou censura de qualquer natureza. Entretanto, a Carta Magna também é clara ao vedar o anonimato e ao assegurar a dignidade da pessoa humana, o que significa que um direito não poder ser acionado para se sobrepor a outro. Dessa maneira, fazer um mau ou abusivo uso da liberdade de expressão, mobilizando-a para exteriorizar preconceitos e/ou discriminar pessoas, pode acarretar em punições previstas em lei.

Grandes empresas como Facebook, YouTube e Twitter vêm atuando mundo afora para retirar conteúdos e apagar contas que disseminem e incentivem a violência. 

Contudo, o desafio é complexo, e esses materiais se proliferam muito rapidamente, não apenas nessas plataformas. É por essa razão que a melhor solução para atenuar esse quadro é investir em educação midiática, uma vez que a mudança precisa ser cultural.

Nesse sentido, o papel da escola e do professor torna-se crucial, apoiando os alunos para que eles aprendam com senso crítico a serem cidadãos responsáveis no século 21, assimilando que o inaceitável fora da internet continua sendo inaceitável no mundo online. Afinal, discurso de ódio não é opinião, polêmica ou controvérsia, e essa prática não corrobora, de forma alguma, para que os estudantes construam uma verdadeira participação cívica na sociedade.

Crianças e jovens precisam compreender que a partir do momento em que suas palavras, faladas ou escritas, ameaçam, ofendem, agridem ou diminuem alguém ou um grupo, haverá consequências. No universo escolar, é ainda importante compreender quando discurso de ódio se aproxima e se diferencia do cyberbullying, prática condenável de intimidação e/ou agressão no ambiente virtual e que, infelizmente, é bastante comum entre os alunos. 

Para atenuar essas situações e fazer valer a função da escola na formação moral dos indivíduos, os educadores podem propor atividades pedagógicas que envolvam o uso das redes sociais. Um exercício possível seria escolher um post de uma celebridade ou figura pública que tenha gerado uma reação desrespeitosa e sugerir aos jovens que acompanhem por um tempo os comentários para, posteriormente, promover um debate em sala de aula. 

Além disso, é possível buscar materiais de qualidade na própria Safernet Brasil, organização sem fins lucrativos dedicada a garantir a segurança em questões de privacidade e crimes na web. A plataforma conta com conteúdos que podem disparar conversas e engajar professores e alunos a compreenderem de que forma podem construir uma cultura digital saudável, dedicada ao conhecimento, como demanda a própria Base Nacional Comum Curricular (BNCC) em suas competências gerais. 

Assim, é fundamental que crianças e jovens concluam a educação básica sabendo analisar uma possível mensagem de ódio na internet, sendo capazes de investigar e responder questões referentes ao propósito, conteúdo e impacto desses textos, tais como: Sobre o que é essa mensagem? Quais ideias, valores e informações estão explícitos e implícitos? Quem é o público-alvo? O que os autores desejam que eu faça? O que os autores querem que eu pense? Quem pode se beneficiar dessa mensagem? Quem pode ser prejudicado? Quais vozes estão representadas ou foram privilegiadas? Quais vozes foram omitidas ou abafadas? Ao compartilhar, estou concordando com esse texto?

Em outras palavras, discurso de ódio deve ser exaustivamente debatido na sala de aula por um simples motivo: é questão de cidadania. E se a missão da escola é formar cidadãos, essa discussão lhe é inescapável. Apenas desse modo poderemos garantir a liberdade de expressão e, ao mesmo tempo, estancar manifestações de racismo, xenofobia e outros males inaceitáveis para o desenvolvimento de uma sociedade mais justa. Garantir uma comunicação não-violenta é responsabilidade de todos nós. ​

Mariana Mandelli

Coordenadora de comunicação do Instituto Palavra Aberta

Isabella Galante

Jornalista do Instituto Palavra Aberta

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