Descrição de chapéu Palavra Aberta

É preciso cancelar o cancelamento

Julgamentos online desviam a atenção dos jovens e esvaziam debates importantes

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Mariana Mandelli

Coordenadora de comunicação do Instituto Palavra Aberta

São Paulo

“Aparentemente eu fui ‘cancelada’”, postou a chef Paola Carosella no dia 24 de julho no Twitter, após ser acusada de gordofobia por conta de um tweet sobre alimentos ultraprocessados. No dia seguinte, na mesma rede, ela perguntou: “O que é mesmo ser cancelada? De verdade, não sei o que é... alguém me explica por favor? Obrigada”.

A dúvida da apresentadora do MasterChef não é isolada, já que o ato de “cancelar” uma pessoa eclodiu por aqui recentemente, ganhando capas de revistas, manchetes de sites e pautas em lives. No momento em que vivemos uma crise sanitária sem precedentes, o tema do “cancelamento” inundou a internet, transbordando para o debate público ao ser apontado como uma “cultura” no Brasil e no exterior.

Em 2019, o Dicionário Macquarie, da Austrália, elegeu “cultura do cancelamento ("cancel culture”) como a expressão daquele ano. O comitê que fez a escolha afirmou que essa é “uma atitude tão difundida que se tornou, para o bem ou para o mal, uma força poderosa”. Tal força, como se vê, segue presente em 2020.

Mas o que seria, afinal, “cultura do cancelamento”? Como qualquer termo emergente da efemeridade das redes, o conceito é difuso e tem gerado discussões sobre a sua real existência ou não. As definições são diversas, mas a linha comum entre elas mostra que “cancelar” alguém (ou algo, porque o alvo também pode ser uma empresa ou instituição) seria o ato de boicotá-lo após uma conduta ofensiva, imoral ou contrária ao que, em tese, se espera desse indivíduo.

O boicote romperia das plataformas sociais, cujas timelines se tornam bancadas de júri popular, concretizando aquilo que é comumente chamado de “tribunal da internet”, onde os veredictos são concluídos rapidamente. A reputação da figura em questão torna-se, portanto, tema de interesse público – mesmo não sendo –, e muita gente se sente obrigada a opinar por meio de posts, vídeos e memes. A ideia é que todos vejam e condenem tal atitude e, assim, “cancelem” tal pessoa também de suas vidas offline.

A lista de “cancelados” é extensa, os contextos são inúmeros e os motivos, incontáveis. Porém, apesar da prática ser recorrente, as poucas pesquisas sobre o tema mostram que a maioria das pessoas a condena. A agência de conteúdo digital Mutato, por exemplo, analisou cerca de 8 mil comentários nas redes que tratavam do assunto e concluiu que 79% deles eram contra “cancelar”.

A quantidade de questões problemáticas em torno desse fenômeno é vasta justamente porque tudo vem sendo chamado de “cancelamento”, mas alguns pontos merecem ser levantados, ainda mais se considerarmos que grande parte da audiência das plataformas digitais e das próprias personalidades sub judice é formada por jovens.

O primeiro é que o “cancelamento” muitas vezes vem atrelado ao que se chama de “exposed”, prática virtual que consiste em denunciar violência sexual e de gênero. Ao expor os supostos agressores, as vítimas encontram acolhimento e apoio, mas geram outros problemas: podem ser processadas por calúnia e difamação e também atrair trolls e haters. Além disso, “cancelar” o agressor não substitui uma denúncia formal – um crime deve ser investigado como tal.

Os “cancelamentos” também geram ondas de linchamento virtual com impacto fora das redes. Um caso conhecido é o do norte-americano Emmanuel Cafferty, que teve um gesto corporal filmado e confundido com o de supremacistas brancos. As imagens foram divulgadas nas redes no auge da discussão antirracista nos Estados Unidos e ele acabou perdendo o emprego sem ao menos conseguir se defender.

Vale destacar também o paradoxo inerente ao “cancelamento”: ele dá holofotes para a figura que teoricamente deveria ser banida, chamando ainda mais atenção para ela e, claro, fazendo com que surjam seus defensores, mesmo que sua atitude tenha sido condenável. Nesse aspecto, discute-se a eficácia dessa prática já que, como uma vacina de efeito temporário, o “cancelamento” também não dura muito em certos casos – como aconteceu com a influenciadora Gabriela Pugliesi, que após meses fora das redes, retornou com um vídeo em que pede desculpas e afirma que, na internet, “as pessoas são resumidas e canceladas por um erro”.

Por fim, talvez o ponto mais importante: quando alguém é criticado por uma fala preconceituosa, é comum usar a suposta irracionalidade da “cultura do cancelamento” como defesa, ao invés de reconhecer o erro. Ou seja: chamar a cobrança por uma postura ética de efeito manada das redes minimiza pautas sociais e esvazia debates importantes. O rapper Emicida, que também já foi “cancelado”, resumiu essa ideia em entrevista ao Roda Viva da TV Cultura: “A pessoa está sendo exposta e responsabilizada pela forma irresponsável com que ela compartilhou um pensamento”.

Alguns alvos dessa responsabilização alegam cerceamento da liberdade de expressão. É o que aconteceu, por exemplo, com a escritora J.K Rowling, autora da série “Harry Potter”, que assinou um manifesto com outros 152 intelectuais contra uma “censura que promove a humilhação pública” – Rowling já foi acusada diversas vezes de transfobia.

Se a “cultura do cancelamento” existe ou não, cada um tem uma opinião sobre, assim como na hora de “cancelar” alguém. Mas a verdade é que tal fenômeno mistura uma série de questões, que vão de frases mal colocadas a crimes reais, passando por críticas necessárias e por um desprezo a discussões sociais relevantes, que ganham erroneamente um aspecto de “mimimi”.

Tudo isso tem mostrado aos jovens que as redes podem ser lugar de intolerância e polarização em vez de debate e diálogo, deturpando as inúmeras possibilidades de aprendizagem que elas guardam. Se esperamos que as novas gerações sejam mais midiaticamente educadas do que as anteriores, é preciso refletir sobre o proveito que elas estão extraindo disso tudo – que, até agora, não se mostra muito positivo.

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