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Palavra Aberta

Não dê engajamento para conteúdos criminosos

Na ânsia de incentivar denúncias, internautas expõem mais as vítimas, como aconteceu com garota de 10 anos grávida

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São Paulo

A tragédia da menina de 10 anos grávida em consequência de estupros cometidos pelo tio é composta por uma sucessão de violências inimagináveis. Entre os abusos indescritíveis, não é possível deixar de citar a exposição ilegal dos seus dados nas redes sociais, o que levou uma horda de fanáticos religiosos para a porta do hospital onde a criança realizou o aborto no último fim de semana –procedimento, vale reforçar, garantido pela legislação brasileira em casos como esse.

Manifestantes se reúnem diante de hospital em Recife para protestar contra o aborto legal em uma menina de dez anos grávida após ser estuprada - Filipe Jordão-16.ago.20/JC IMagem

O vazamento do nome e da localização da vítima foi realizado pela ativista de extrema-direita Sara Giromini, conhecida como Sara Winter, que tem milhares de seguidores nas redes sociais. Tal atitude foi classificada como “fato gerador das situações que desvelam a bestialidade humana” por uma ação de juristas enviada à Procuradoria da República no Distrito Federal. O documento pede novamente a prisão de Sara –em junho, ela foi detida por suspeita de envolvimento em atos antidemocráticos.

Como se sabe, a preservação da identidade de menores de idade é garantida pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que em seu artigo 17 determina que “o direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, ideias e crenças, dos espaços e objetos pessoais”. O artigo 247 também afirma que a divulgação sem autorização de “nome, ato ou documento de procedimento policial, administrativo ou judicial relativo a criança ou adolescente” também é proibido e passível de penalização.

Além do ECA, a exposição dos dados da garota feriu, segundo especialistas em Direito, a Constituição Federal e o Código Penal, podendo submeter quem divulgou e compartilhou as informações a sanções civis e criminais, como reforça a SaferNet, entidade que preza pela segurança digital.

A questão do compartilhamento dessas mensagens é bastante sensível porque envolve também os usuários com boas intenções que, na ânsia de contabilizarem mais denúncias, acabaram por expor ainda mais a vítima, agindo da mesma forma que os indivíduos que começaram o "doxing", nome pelo qual é reconhecida a prática de divulgação de dados privados.

Ou seja: a simples reprodução desses posts, mesmo com o objetivo de condená-los, pode ser punida pela justiça, já que amplifica prejuízos morais e sociais para a vítima. E isso pode se dar não só pelo ato de compartilhar, mas também por comentar a postagem, mesmo que seja de modo indignado.

O raciocínio é simples: ao interagir com um conteúdo, você gera engajamento para ele. Quanto mais engajamento, mais gente é atingida pela mensagem que, se for nociva ou prejudicial, aumenta a escala da violência a que o alvo está sendo submetido, podendo gerar efeitos fora das redes –exatamente como aconteceu com a menina capixaba grávida, já que manifestantes compareceram ao hospital na tentativa de impedir o aborto.

Ou seja: curtir, comentar e compartilhar nunca são as melhores opções para demonstrar repúdio. Esse debate já tinha sido levantado em escala nacional há cinco anos, quando uma menina de 12 anos, participante do reality show MasterChef Junior, da Band, foi alvo de mensagens sexuais no Twitter. Por isso, a orientação é sempre denunciar diretamente às plataformas e aos órgãos competentes, sem espalhar ou dar mais visibilidade para o ocorrido.

Nos últimos dias, tanto o Instagram como o YouTube removeram as contas de Sara. O Facebook também apagou o vídeo em que ela expunha a criança, afirmando que o conteúdo viola as regras da plataforma. Mas, em minutos, surgiram novos perfis nas redes que apoiam a extremista, o que indica, mais uma vez, que a resolução desse tipo de conflito não é simples.

Não existe outra saída que não seja educar os usuários para que tenham responsabilidade por todos os seus atos nas redes sociais. Para além de denunciar conteúdos nocivos e cobrar uma postura mais rígida das plataformas, é necessário desenvolver a consciência de que curtir, comentar e compartilhar não podem ser comportamentos tão automatizados. Agir sem esse tipo de reflexão intensifica os níveis de crueldade de situações intrinsecamente delicadas. É preciso, portanto, um engajamento mais cidadão por parte de todos e todas.

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