Decreto que recria escola especial atrai preocupação de especialistas

Norma assinada por Bolsonaro no dia 30 revive possibilidade de separar alunos com deficiência

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Raphael Preto Pereira
São Paulo

Uma alteração na Política Nacional de Educação Especial, anunciada pelo Ministério da Educação no último dia 30, por meio de decreto, alimenta reações calorosas tanto no Congresso Nacional como entre entidades e membros da sociedade civil.

Deputados, senadores, lideranças de organizações sociais e voltadas à educação estão se manifestando contra a mudança, que abre espaço para a volta das chamadas “escolas especiais” e é qualificada como segregacionista.

Especialistas em educação apontam retrocesso.

Michelle Bolsonaro se comunica a partir de libras
Michelle Bolsonaro, no lançamento da Política Nacional de Educação Especial e Homenagem ao Mês dos Surdos - Carolina Antunes/PR

A política em questão prevê regras para escolas públicas e privadas do país conduzirem o acesso à educação de alunos com deficiência e com altas habilidades.

Antes da alteração apresentada pelo governo de Jair Bolsonaro (sem partido) o modelo tinha de ser o inclusivo, com aprendizado conjunto entre os alunos, com a possibilidade de aperfeiçoamento em contraturno quando houvesse necessidade.

No ano passado, pesquisa feita pelo Datafolha e pelo Instituto Alana, ONG que atua na defesa dos direitos das crianças e adolescentes, mostrou que a maioria da população brasileira defendia um modelo sem segregação. Dos entrevistados, 86% disseram concordar com a frase: “As escolas se tornam melhores ao incluir pessoas com deficiência”.

“O governo, em vez de qualificar a política que já existia, investindo na estrutura e formação dos profissionais de educação, dá um passo para trás”, afirma Raquel Franzim, 40, coordenadora da área de educação do Alana.

Italo Dutra, diretor na Unicef, o braço da ONU para infância e adolescência, acrescenta que as modificações colocam o Brasil num cenário ruim ante os organismos internacionais: “Nossa recomendação é sempre pela inclusão”.

Parlamentares de siglas diversas se articulam para barrar a iniciativa. O deputado Alexandre Padilha (PT-SP) propôs uma medida para tentar sustar os efeitos do decreto, cujo efeito descreve como “o que era feito com os leprosos nos tempos bíblicos”.

Felipe Rigoni (PSB-ES) concorda. “Não pode ser tudo repassado para escolas especiais, precisamos encontrar um meio termo”, diz.

Luiza Corrêa, coordenadora de Advocacy (ação politica) do Instituto Rodrigo Mendes, um dos mais importantes do país no fomento à educação inclusiva, aponta interesse de instituições e de associações filantrópicas que atendem pessoas com deficiência na medida que permite as salas e escolas especiais.

“A briga é antiga. Estamos falando de escolas especiais que, na maioria das vezes, ensinam somente atividades simples da vida diária, como escovar os dentes. Isso não é papel da escola.”

A Constituição estipula que, preferencialmente, pessoas com deficiência devem estudar em escolas regulares. É a mesma disposição da Lei de Diretrizes e Bases da Educação, que foi reforçada pela Lei de Brasileira de Inclusão, aprovada há cinco anos.

Até 2015, o acesso de pessoas com deficiência ao ensino privado, sobretudo em casos severos, era dificultado por escolas particulares. Algumas chegaram a ajuizar ação na Justiça pedindo que fosse declarado constitucional um acréscimo na mensalidade desses alunos.

O Supremo Tribunal Federal vetou a prática, lembrando que o direito à educação inclusiva não beneficia apenas a criança com deficiência, mas todos os estudantes, que aprendem desde cedo a conviver com a diversidade.

O texto anterior da política também estava em consonância com a legislação internacional da ONU e da Unesco.

“Não imaginávamos que o governo iria modificar essa política”, declara Carola Videla, presidente da Turma do Jiló, organização que desenvolve projetos de capacitação de professores das redes públicas inclusivas.

No lançamento das novas diretrizes, no último dia 30, a secretária de Modalidades Especiais do MEC, Ilda Peliz, afirmou que a nova política deve “ampliar o atendimento educacional especializado, reduzirá perdas, eliminará barreiras sociais e permitirá ao país ter mais avanços e, aos educandos, mais realização pessoal”.

Procurado, o MEC não respondeu a perguntas da reportagem nem explicou quais seriam as perdas, limitando-se a divulgar uma nota.

No texto, o ministério afirmou que “um dos princípios fundamentais é o direito do estudante e da família na escolha da alternativa mais adequada para a educação do público-alvo desta política”.

Ex-ministro da Educação, o petista Fernando Haddad, que participou da formulação do antigo regulamento, ressaltou que a intenção nunca foi afastar totalmente as escolas especiais do processo inclusivo.

“Instituições como a Apae de São Paulo [atual Instituto Jô Clemente] entenderam isso e passaram a oferecer apoio para escolas regulares”, diz.

“O que o governo está fazendo é tirar o incentivo legal e financeiro, é uma segregação tremenda. Se a gente não incluir na escola, vai incluir onde?”

A política aplicada pelo governo vinha dando resultado. Atualmente, 90% do total de estudantes com deficiência estão matriculados em classes regulares.

Para a senadora Mara Gabrilli (PSDB-SP), que é tetraplégica, o argumento do ministério não se sustenta.

“A opinião dos pais é a que menos tem sido ouvida. Recebo diariamente denúncias de mães e pais que se sentem coagidos a optar pela escola comum ou pela escola especial”.

Ainda segundo Gabrilli, a abordagem realizada pelas escolas “é cruel e recorrente”.

“Escolas dizem aos pais: ‘Seu filho é especial e ele não será feliz aqui. Aqui não é o lugar dele. O lugar dele é ali, na escola especial’. Uma exclusão velada”, lamenta.

Nas redes sociais, um movimento chamado “escola especial não é inclusiva” tem ganhado milhares de adeptos em protesto contra a alteração divulgada.

Há, por outro lado, grupos que comemoram a possibilidade de reabertura de espaços que possam oferecer uma educação que consideram mais acolhedora, segura e efetiva para crianças com maior demanda tanto de atenção específica de aprendizado quanto de cuidados pessoais.

Ainda assim, a procuradora da República Eugênia Gonzaga, autora do livro “Direito das Pessoas com Deficiência, que viu a norma com preocupação, levanta a questão da opção. “O decreto cita escolas regulares inclusivas. Será permitido que as escolas não sejam mais inclusivas? Escolas poderão voltar a recusar alunos?”

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