Lei de ensino da história africana faz 18 anos com desafios para sair do papel

Especialistas apontam retrocessos nas políticas educacionais e falta de respaldo jurídico

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Nataly Simões
São Paulo

Próxima da maioridade, a legislação que estabelece o ensino da história e cultura africana e afro-brasileira nas escolas do país ainda enfrenta desafios para sua aplicação.

A lei federal 10.639, de janeiro de 2003, serviu de base para o desenvolvimento de políticas voltadas à temática racial a partir da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, de 2004, e também foi um pontapé para a consolidação do Dia Nacional da Consciência Negra, em 20 de novembro, dia da morte do líder quilombola Zumbi dos Palmares.

A lei abriu portas para a formação de professores e a aquisição de materiais didáticos sobre a história da África e dos brasileiros afrodescendentes, diz a professora Macaé Evaristo, ex-secretária de Educação de Minas Gerais.

Além disso, possibilitou a criação da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (Secadi), pasta do Ministério da Educação (MEC) —da qual Evaristo foi titular entre 2013 e 2014.

“A grande inovação do Ministério da Educação foi a criação da Secadi, em 2004, que tinha como foco a redução das desigualdades educacionais, ou seja, a construção de políticas voltadas à população negra, que ficou de fora do direito à educação praticamente todo o século 20”, conta.

Entre os desafios que a legislação enfrenta para ser aplicada no país, Evaristo cita o desmantelamento no setor educacional do país. A Secadi, por exemplo, foi extinta no início do mandato de Jair Bolsonaro, por meio do decreto 9.465, de 2 de janeiro de 2019.

“A lei tem menos de 20 anos e estamos vivendo no campo educacional um grande retrocesso. Temos visto uma série de cortes na educação e um total desrespeito às prioridades e metas estabelecidas no plano nacional de educação. Não é diferente com a proposta de implementação do ensino de história da África nos currículos escolares”, afirma.

Os governos estaduais e municipais podem implementar o ensino da história e da cultura africana e afro-brasileira nos currículos escolares a partir da Lei de Diretrizes e Bases da Educação, que em escala nacional define e regulariza a organização da educação com base nos princípios presentes na Constituição Federal.

O professor Otair Fernandes, pesquisador do Laboratório de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), destaca que desde a criação da lei há resistência de parte dos gestores de escolas.

“Já enfrentávamos obstáculos de gestores de escolas estaduais e municipais, mas, em alguns municípios, dependendo do governo, vínhamos avançando. Nós dependemos, na realidade, dos movimentos negros e de quem ocupa os cargos públicos, por isso o Ministério Público tem feito um trabalho convergente com a implementação da lei. Precisamos agora ter ações no Judiciário contra quem não cumpre a legislação”, analisa.

Vereadora eleita pelo PT em Belo Horizonte, Macaé Evaristo diz que, com o aumento de vereadores negros nas Câmaras Municipais a partir de 2021, a mobilização para a inclusão do ensino da história da África será intensificada.

O texto do Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnico-Raciais aborda questões como a necessidade de políticas de reparação, a desconstrução do mito da democracia racial e a desmistificação de afirmações como a de que negros se discriminam entre si —pautas levantadas pelo movimento negro há décadas.

“Lá no início do século 20, a população negra era proibida de frequentar a escola. É bom a gente lembrar que a Frente Negra Brasileira [movimento criado em 1931] tinha um setor específico para educação e cultura, justamente por compreendê-las como fundamentais para a emancipação da população negra”, afirma Macaé Evaristo.

“É fundamental entendermos o ensino da história da África também dentro desse conjunto de lutas para desmontar o racismo que temos no Brasil. A sociedade brasileira se constituiu a partir de um racismo que excluiu as pessoas negras da educação. Carolina Maria de Jesus conta em um de seus livros que nas fazendas não existiam escolas, o que havia eram enxadas em abundância”, pondera.

Autora do livro “Descolonizando a Lei 10.639/2003 no Ensino de Ciências” ao lado de Katemari Rosa, a professora Bárbara Carine Soares defende a importância de descolonizar a história afro-brasileira na educação básica. Soares também está à frente da Escolinha Maria Felipa, localizada no centro de Salvador (BA), focada na construção decolonial da educação infantil.

Com base em sua experiência na sala de aula, a professora explica que o ensino da história africana e dos afro-brasileiros em uma perspectiva que não seja eurocentrista é uma reconstrução subjetiva potente para as crianças. “As pessoas que têm uma leitura de que descendem de escravos aceitam qualquer desgraça que a sociedade possibilita. Se eu vejo que descendo de reis, cientistas, matemáticos, eu me preto no mundo de outra forma. A descolonização é essencial para sabermos quem somos”, afirma Soares.

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