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Volta às aulas após quase um ano provoca estranhamento em pequenos e ansiedade nos maiores

Casos vivenciados na reabertura das escolas chamam a atenção de educadores para as sequelas do confinamento prolongado

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São Paulo

Nos primeiros dias de aulas presenciais, Lucas, 10, passou os recreios sozinho, trocando mensagens com a sua mãe pelo celular. Letícia, 15, teve ataque de ansiedade logo que chegou ao portão da escola e precisou chamar os pais para buscá-la. João, 12, não quis conversa com os colegas da turma, que, para ele, não são tão legais quanto os amigos virtuais. Mariana, 3, chorou muito e foi agressiva com a professora.

São casos aparentemente isolados em meio ao clima de comemoração de crianças e jovens com a reabertura das escolas em São Paulo, mas que já chamam a atenção de educadores para as sequelas do confinamento prolongado.

A volta às aulas é sempre tempo de readaptação, mas, desta vez, após um ano sem escola e diante das angústias trazidas pela pandemia, há alunos para os quais as dificuldades, mesmo as comuns, como acordar cedo e fazer novos amigos, se acentuaram.

Tornam-se evidentes as consequências do uso excessivo de tecnologia, que obviamente não surgiu no confinamento mas foi por ele agravado. Quando o celular é permitido nas escolas, tende a ganhar espaço no intervalo das aulas, e os alunos ficam imersos na tela em vez de se sociabilizar com os que estão ao lado. O veto ao aparelho não necessariamente resolve a questão e deixa alguns irritados e entediados.

É o caso de João, 12 (os nomes foram trocados para preservar os alunos), que estuda em uma escola particular. Ele desenvolveu depressão em 2020 e está feliz com o retorno às aulas, mas confessa achar as amizades virtuais que fez no confinamento mais interessantes do que a dos velhos amigos de turma. “Estou achando o pessoal da escola meio chato...”

Lucas, 10, que teve de mudar de cidade na pandemia e, consequentemente, de escola, uma particular como a anterior, não conseguiu se enturmar nos primeiros dias e, no recreio, ficou sozinho na sala, dizendo para a mãe pelo WhatsApp que estava “odiando tudo”.

Os intervalos, aliás, estão mais silenciosos, na opinião de Caroline Campidelli, diretora da Escola Estadual Joaquim de Toledo Camargo, em Itirapina, cidade paulista a 217 km da capital, com 18,3 mil habitantes. “Estou na escola agora, você está percebendo o silêncio à minha volta? Não escutamos aquela conversa toda, risadas”, diz à Folha, pelo celular.

“Parece que as crianças não têm assunto, ficam isoladas, mais tristes, cada uma no seu canto com celular. Não é mais aquela molecada alegre, que brincava e falava sem parar”, afirma a diretora, que também é mãe de uma aluna do 9º ano do colégio. “Claro, chegaram na maior alegria por rever os amigos e os professores, mas sentiram esse tal novo normal, o fato de não poder nem abraçar ninguém, de as salas estarem vazias.”

Karen Rastelli, coordenadora do ensino infantil da escola Stance Dual, em São Paulo, notou problemas maiores de adaptação nos alunos que ficaram mais isolados - Karime Xavier/Folhapress

Caroline conta que está fazendo atividades de acolhimento em grupo, como rodas de conversa para falar sobre medos e anseios, e recebendo alunos particularmente, o que a leva a perceber os traumas do isolamento. “Um garoto de 13 anos me disse: ‘Graças a Deus voltei para a escola porque não aguentava mais ver o meu pai batendo na minha mãe’. Vai ser preciso dar muito apoio a todos e ter pensamento positivo.”

Entre os casos complexos da retomada está o de Letícia, 15 anos, que desenvolveu síndrome do pânico na pandemia e não consegue passar do portão do colégio estadual no qual estuda desde pequena.

“Ela começou com insônia, passou a roer as unhas até os dedos sangrarem e desenvolveu gastrite nervosa”, conta a mãe da garota, que passou quase toda a pandemia apenas com os pais. “Depois vieram a ansiedade e os ataques de pânico. Está tomando calmante e antidepressivo, em tratamento com psicólogo e psiquiatra. Quer muito voltar à escola, mas, quando chega lá, tem falta de ar e já chegou a desmaiar.”

Dos problemas graves aos que parecem simples, a hora é de se voltar mais às questões emocionais do que às de aprendizado, na avaliação de Telma Vinha, doutora em educação, professora de psicologia educacional da Unicamp e pesquisadora de convivência no ambiente escolar. Ela diz que está em contato com escolas públicas e ouve relatos do estresse que acompanha os alunos na retomada.

“Eles chegam com o peso das orientações dos pais e da vigilância dos profissionais da escola para o cumprimento de todos os protocolos”, afirma. “Estão mais acostumados com relações virtuais, nas quais é mais fácil solucionar conflitos. Precisam de ajuda para se sociabilizar e ressignificar o ambiente escolar.”

Telma ressalta que as regras de distanciamento não devem impedir a escola de favorecer a integração e critica aquelas que preferem estimular o uso do celular para facilitar o controle dos protocolos.

“Interações não precisam ser físicas”, diz. “Pode-se propor uma série de atividades, desde jogos, como aqueles de cartas com perguntas sobre sentimentos e experiências, até as que envolvem movimento, como pular corda, amarelinha, bambolê, fazendo combinados sobre distância e higienização das mãos. Mais do que nunca, as crianças precisam se movimentar.”

Ações como essas não devem ficar restritas a eventos inaugurais, como o “dia ou a semana do acolhimento”, lembra Cynthia Sanches, pedagoga especializada em educação integral do Instituto Ayrton Senna. A recuperação desse tempo traumático, afinal, não se dará da noite para o dia, e o investimento na parte socioemocional deve ser perene nas escolas.

“Essa atenção ao emocional não deve ficar a cargo de um só profissional ou de uma disciplina específica, mas estar articulada com todo o currículo”, afirma. “Isso acelera também o resgate do aprendizado. É bem mais fácil aprender quando nos sentimos bem e seguros.”

O Instituto Ayrton Senna disponibilizou no site um material sobre educação em tempos de crise, com sugestões de atividades sociemocionais para professores (veja quadro). Há, por exemplo, o “kit resiliência”, em que se anota uma experiência difícil e de que maneira foi possível superá-la. O texto vira uma tabela para ser consultada diante de obstáculos. Um seminário sobre o tema reuniu representantes das secretarias estaduais de educação e diretores municipais de ensino.

Consultor de gestão de 1.500 escolas particulares no Brasil, Christian Rocha Coelho, do Grupo Rabbit, afirma que o retorno às aulas presenciais foi de “uma alegria imensa” por parte dos alunos e que “as dificuldades foram pontuais e se assemelharam às normais de qualquer adaptação”.

Essa é uma dúvida de pais e educadores em situações como as de Mariana, 3. Ela está começando a frequentar a escola, uma instituição particular, depois de permanecer durante o ano passado quase todo em casa, com os pais. Os primeiros dias têm sido de crises de choro e de agressividade, e nem a família nem a professora sabem ainda se a reação está além do que ela teria em uma adaptação normal, sem a pandemia.

Coordenadora do ensino infantil da Stance Dual, escola bilíngue da Bela Vista (região central de São Paulo), Karen Rastelli diz que há muitos alunos novos e ainda é difícil saber se as dificuldades são atípicas.

“O que percebi é que houve uma alegria imensa de estar na escola nos primeiros dias, quando os pais também estavam presentes para a adaptação. Com a saída deles, alguns ficaram inseguros e choraram”, conta. Essa experiência inicial também mostrou, segundo Karen, que os que choraram mais e de forma persistente foram os que ficaram mais isolados. “São alunos que não vieram nem para as atividades extras liberadas em outubro.”

A retomada será mais fácil se as crianças se sentirem seguras na escola, o que parece missão impossível: “Elas viram tudo abrir na pandemia, foram para shopping, praia, encontraram familiares e amigos, só não puderam ir para a escola. Logo, para elas, onde é a morada do bichinho?”, diz Gisela Wajskop, referência em educação infantil e na formação de professores no Brasil e proprietária da Escola do Bairro, na Vila Mariana (zona sul).

Será, portanto, preciso recriar esse lugar relegado à “morada do bichinho”, fazendo com que ele seja infestado por um acolhimento tão potente que os alunos sentirão o abraço que não podem receber.


Atividades para a volta às aulas

Sugestões podem ser praticadas por professores e alunos

PARA FORTALECER A RESILIÊNCIA

Resilência é a capacidade de enfrentar dificuldades, aprender com elas e ganhar força, além de controlar reações como raiva, insegurança e ansiedade; convide os alunos a preparar a lista abaixo para ler em momentos de adversidade.

  • Uma situação difícil que superei foi _______  (lembre-se que em situações difíceis é importante retomar o que já conseguiu conquistar)
  • Minhas estratégias para o controle emocional foram ______ (liste ideias que já utilizou para regular suas emoções)
  • As pessoas com quem pude e posso contar são ______ (conversar com pessoas de sua confiança, que podem lhe ouvir e ajudar a lidar com desafios, faz toda a diferença)
  • Meus pontos fortes foram e são ______ (conhecer suas forças e competências pode contribuir para você ter maior autoconfiança diante de desafios)
  • Minhas atividades de autocuidado e bem-estar foram e são ______  (incluir na rotina práticas que lhe fazem bem ajudam o equilíbrio emocional)

JOGO DO NOVO

Ser aberto ao novo ajuda a encontrar alternativa para desafios, a ser criativo e a resolver problemas. Esse jogo incentiva a mudança de perspectiva a partir de novos usos para objetos do cotidiano.

  1. Selecione, sem pensa, quatro ou cinco objetos de seu cotidiano e os coloque em cima de uma superfície, enfileirados
  2. Prepare um cronômetro para apitar a cada 40 segundos, durante os quais você irá interagir com esse objeto
  3. Inicie com o primeiro objeto. Você terá 40 segundos para imaginar o maior número de funcionalidades para ele
  4. Quando o cronômetro sinalizar, passe para o próximo e siga improvisando funcionalidades até esgotar
  5. Reflita: quais suas sensações e os comportamentos durante a atividade? O que, no seu cotidiano de trabalho, pode ser reinventado criativamente?
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