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Ana Carolina G. O. Ferreira

Anne Frank de volta ao porão

Falar a respeito guarda distância enorme em relação a atuar, praticar ou estimular o sexo

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Ana Carolina G. O. Ferreira

Mãe de 3 meninos, casada, psicóloga, idealizadora do @canalpedemoleque, com o intuito de promover discussões sobre cotidiano familiar e desenvolvimento infantil

Quem nos últimos dias não se deparou com alguma reportagem ou discussão em rede social em torno da polêmica envolvendo o livro "Anne Frank 's Diary: The Graphic Adaptation", ocorrida na Escola Móbile de São Paulo?

Essa leitura foi passada para a turma do 7º ano do colégio, alunos no início da adolescência, do alto de seus 12 anos, como parte de um projeto de conscientização sobre 2ª Guerra Mundial e Holocausto.

O livro é uma adaptação gráfica de um clássico da literatura ocidental, com texto fiel ao escrito por Anne Frank. É a autobiografia de uma jovem judia que viveu anos escondida, até que fosse descoberta e assassinada pelos nazistas. Relata, portanto, o medo da vida escondida, o preconceito, os sofrimentos, as situações cotidianas e os conflitos internos de uma adolescente, isolada com sua família, vivendo os horrores do Holocausto.

De acordo com alguns pais, o material continha narrativas eróticas e sexuais a respeito da descoberta por Anne do próprio corpo, segundo esses inadequadas para alunos daquela série, inclusive porque como parte do planejamento pedagógico, os textos são lidos em voz alta pelos alunos.

Em resumo, os trechos que viraram objeto de discussão se referem à menina descrevendo sua própria genitália, discorrendo sobre sexualidade, sobre desejos, sobre curiosidades. Nada mais natural para uma adolescente.

Por que será que em 2021 persiste tanta dificuldade em se falar sobre sexualidade? Quando me refiro a falar, incluo aqui discussão, verbalização, por óbvio. Creio que isso acontece muito porque ainda há confusão sobre sexo e sexualidade, sobre o fato de que falar a respeito, conhecer e apropriar-se do assunto guarda uma distância enorme em relação a atuar, praticar ou estimular o sexo propriamente dito.

Não é aqui minha intenção teorizar a respeito, mas incitar a reflexão acerca do assunto, que, está claro, precisa ser mais falado, mais normalizado, pelo bem de nossos próprios filhos. Preocupa-me o fato de que muitos desses adolescentes estão expostos cotidianamente na internet, nas redes sociais, nos filmes e até na publicidade a conteúdos, esses sim, sexualizados, erotizados, infinitamente mais do que Anne estava em 1940. E com a constatação de que são nesses meios que eles vão procurar sanar suas dúvidas e curiosidades, muito mais facilmente a cada dia, principalmente em um contexto em que os pais se furtam a ocupar esse espaço.

Nós, os pais, temos duas alternativas. Ou nos enganamos acreditando que conseguimos colocá-los em uma bolha ou aceitamos a realidade e trabalhamos no sentido de orientá-los a lidar com a enxurrada de informações a que eles têm acesso, mantendo aberto o canal de escuta, participando do amadurecimento deles e nos tornando uma referência para o diálogo.

É preciso pensar sobre o quanto nossos filhos almejam atender nossas expectativas, inclusive atuando para demonstrar uma ingenuidade que, possivelmente, não tenham mais, já que da natureza, dos hormônios e da própria condição humana ninguém pode fugir. Como você quer estar nessa relação? Verdadeiramente ou participando da atuação, do fingimento? O que se está ensinando quando escolhemos um desses papéis?

O que existe de melhor do que a literatura para permitir o contato com temas como esse, de forma espontânea? Lembremos que uma obra é diferente para cada pessoa que lê, e nossa interpretação diz mais sobre quem somos do que sobre a intencionalidade do autor ou sobre uma suposta essência do texto.

Não seria melhor rompermos o silêncio? Ou vamos continuar escondendo nossos jovens no porão?

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