Aos 100, Paulo Freire segue reconhecido no exterior e sai da mira bolsonarista

Ataques contra o educador diminuíram na pandemia, enquanto seu prestígio se manteve intacto

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São Paulo

No intervalo de 48 horas entre o dia 7 de setembro, quando o presidente Jair Bolsonaro proferiu ameaças em um ato golpista, e o dia 9, quando recuou em uma carta, um único livro do educador Paulo Freire foi citado em 23 livros e artigos acadêmicos ao redor do mundo.

O número de obras que a tiveram a edição em inglês de “Pedagogia do Oprimido” como referência, redigidas por autores do Cazaquistão aos EUA, dá uma medida da relevância de Freire a despeito da série de ataques nos últimos anos. Celebrado em seu centenário em eventos, exposições, podcasts e debates no Brasil e no exterior, o educador foi alvo preferencial do presidente e de seu entorno principalmente na eleição de 2018 e no primeiro ano de mandato.

Os ataques arrefeceram junto com a pandemia e os abalos na popularidade de mandatário. Citado 36 vezes em tuítes do ex-ministro da Educação Abraham Weintraub, Freire não foi objeto de nenhuma postagem do atual titular da pasta, Milton Ribeiro.

Pàulo Freire, de barba e óculos, sentado, com as mãos sobre a barriga, olha para o fotógrafo; ao fundo, uma janela aberta
O educador Paulo Freire, que completaria 100 anos neste domingo (19), sorri em casa no Rio de Janeiro em 1979 - Arquivo/Agência O Globo

A retirada da artilharia, ainda que temporária, permite um exame mais sereno sobre a obra de um dos pensadores brasileiros mais prestigiados no exterior. Segundo levantamento feito em 2016 pelo professor Elliott Green, da London School of Economics, a versão em inglês de “Pedagogia do Oprimido” era a terceira obra de ciências sociais mais citada naquele ano no mundo.

De forma bem resumida, o cerne da teoria de Freire é que a educação é uma ferramenta contra a opressão e que qualquer processo educacional deve partir da realidade do próprio aluno. A partir disso, ele criou um método de alfabetização de adultos que foi interrompido pela ditadura militar, mas os desdobramentos dessa premissa se ramificaram muito além dele (entenda as obras e as ideias do educador).

Gerente do núcleo de audiovisual do Itaú Cultural e um dos curadores da mostra sobre o educador que o instituto abre neste sábado (18), Claudiney Ferreira diz ter se impressionado tanto com a dimensão geográfica por onde as ideias de Freire circulam como com sua fluidez por diferentes áreas do conhecimento.

As obras do educador são referência para projetos não só de educação, mas de saúde, artes plásticas e até segurança pública. Além disso, a mostra mapeou 20 institutos Paulo Freire pelo mundo, dedicados a estudar a obra do educador e temas que lhe eram caros, localizados em países tão diversos como Alemanha, África do Sul, China, Egito, Estados Unidos, Itália, Malta e República Dominicana.

A popularidade e atualidade da obra do educador brasileiro se deve principalmente à perpetuação das mazelas do mundo em que ela foi escrita, diz John Holst, da Universidade Estadual da Pensilvânia, nos EUA.

“Considerando-se o fato de que a maioria das pessoas do mundo são da classe trabalhadora ou camponeses, suas realidades são caracterizadas pela opressão. Não foi Paulo Freire que inventou isso. Portanto, se o conteúdo da educação é baseado na experiência das pessoas, questões de classe, raça, gênero e desigualdades nacionais passam a fazer parte do conteúdo da educação, porque são conteúdo da vida da maioria dos estudantes”, diz.

“Opressão, pobreza, sofrimento, tradições conservadoras e desigualdade socioeconômica são realidades por toda a parte, então a mensagem de Freire não perdeu sua relevância”, diz, na mesma linha Tuukka Tomperi, pesquisador da Universidade Tampere, na Finlândia.

Gerente de tecnologias educacionais da ONG Cenpec, Beatriz Cortese ressalta que Freire está presente nas escolas mesmo quando não nomeado. “A premissa de que é preciso um diálogo entre o que a escola tem a ensinar e o que o aluno já sabe é uma ideia superpresente quando se fala em escolas com aprendizagem ativa, algo tido como muito inovador, e isso já estava em Paulo Freire.”

Também nas especificidades do contexto político brasileiro a mensagem de Freire é atual, diz seu biógrafo e pesquisador Sérgio Haddad.

Para ficar em dois exemplos, ele cita a ideia da horizontalidade nas relações da escola como oposta à visão das escolas cívico-militares difundidas por Bolsonaro e a defesa da educação para todos como oposta à universidade para poucos defendida pelo ministro Milton Ribeiro e encolhida pela falta de orçamento.

“Acho que o movimento de defesa do legado de Paulo Freire foi tão grande que acabou calando um pouco os ataques”, diz Haddad.

“A direita brasileira não tem acadêmicos reconhecidos com algum poder sobre o prestígio do intelectual brasileiro mais citado da história”, avalia Leandro Tessler, professor da Unicamp e especialista em divulgação científica.

Fato é que, diferentemente do que poderia se pensar, os ataques das redes bolsonaristas não criaram um maior interesse geral em conhecer melhor as ideias do patrono da educação brasileira.

Segundo o Google, agosto de 2021 foi o mês em que o termo “Paulo Freire” mais foi buscado na última década. Mas, na média, o brasileiro buscou menos por Freire nos últimos cinco anos do que no período anterior.

Com eventos em diversas instituições, o centenário é uma oportunidade valiosa para um exame mais minucioso.

Autor de uma “Paulo Freire mais do que nunca: uma biografia filosófica”, o educador Walter Kohan avalia que tão ruim quanto o ataque obscurantista é o elogio dogmático a Freire. Entre algumas de suas discordâncias do pensamento freireano, Kohan aponta a ideia de conscientização presente no início da produção do educador, que depois ele próprio abandonou por considerar contraditório com seu pensamento achar que alguém tinha uma consciência mais elevada que a de outro para transmiti-la.

Ele cita ainda uma conciliação que, em sua visão é impossível. “Freire dizia que tinha Cristo numa mão e Marx na outra, o que para mim, que não compartilho sua fé, é incompatível. Há inúmeras coisas em Paulo Freire que são criticáveis, mas o valor dele não é só o que ele diz, mas o que ele inspira”, afirma.

E o que inspira, diz Kohan, está ligado a sua abertura ao diálogo, às descobertas e à alegria —ou, como ele gostava de dizer, bonitezas. O próprio educador brasileiro ficaria insatisfeito com a defesa cega de si, afirma o argentino, de tão aberto que era ao livre pensar.

Essa visão fica clara em uma declaração de Freire sobre a própria dualidade citada por Kohan. “Cristo levou-me a Marx, mas eu nunca me neguei o direito de questionar a ambos”, afirmou certa vez.

Professor na Universidade de Tampere, Juha Suoranta cita como conceitos atuais a pedagogia de amor e o diálogo entre educadores e educandos. Por outro lado, critica o uso do português, por pressão do governo local​, e não das línguas nativas, no programa de alfabetização que o educador implantou em Guiné Bissau —uma das razões do fracasso do método no país.

Para ele, o pensamento do brasileiro será mais longevo do que os ataques de seus detratores. “A elite governante está ciente de que Freire foi contra seus privilégios e quer manchar seu legado. No entanto, eles não podem ter sucesso, pois nós que pensamos e agimos no espírito de Freire somos muitos em seu país e no mundo.”

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