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A escultura de Paulo Freire que mira 'guerra cultural' na Universidade de Cambridge

Ênfase do educador brasileiro sobre a importância 'da escuta, da tolerância e do diálogo' tornou-se mais importante no contexto da 'cultura do cancelamento', diz diretora de Cambridge

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Hazel Shearing
BBC News Brasil

Paulo Freire pode não ser muito conhecido no Reino Unido, mas é um dos pensadores mais influentes da educação no mundo.

Seus ensinamentos sobre o pensamento crítico em escolas e universidades moldaram o ensino muito além do Brasil, onde ele nasceu há cem anos. De acordo com levantamento do pesquisador Elliott Green, professor da Escola de Economia e Ciência Política de Londres, o livro principal da obra do educador, "Pedagogia do Oprimido", escrito em 1968, é o terceiro mais citado em trabalhos acadêmicos na área de humanidades em todo o mundo.

E agora, um grupo de importantes acadêmicos da Universidade de Cambridge instalou uma escultura de bronze dele na biblioteca da Faculdade de Educação, ao sul do centro da cidade, como um símbolo de "tolerância e diálogo" em um momento de "guerras culturais" no campus.

Estudantes em Cambridge homenageiam Paulo Freire no ano em que ele completaria 100 anos de nascimento
Estudantes em Cambridge homenageiam Paulo Freire no ano em que ele completaria 100 anos de nascimento - BBC

Em linhas gerais, guerras culturais são descritas por especialistas como o processo em que temas morais como legalização de aborto ou armas se tornam centrais no debate político e opõem conservadores (pessoas de viés mais disciplinador e punitivo) e progressistas (o oposto).

Mas ele morreu no final dos anos 1990, então por que está ganhando destaque agora?

'Atacando tudo'

Décadas depois da prisão de Freire durante a ditadura militar brasileira (1964-85), sua pedagogia está sendo atacada novamente no Brasil.

O presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, chegou a ameaçar "entrar no Ministério da Educação com um lança-chamas" para remover todos os vestígios de Freire. O educador é muitas vezes tratado pelo governo Bolsonaro como bode expiatório da má qualidade do ensino público brasileiro ou suposto "doutrinador comunista" nas escolas.

Para especialistas em educação ouvidos pela BBC News Brasil, entretanto, a raiz da controvérsia em torno da pedagogia de Paulo Freire não é sua aplicação em si –mas o uso político-partidário que foi feito dela, historicamente e, mais do que nunca, nos dias atuais.

"Li a maior parte dos livros dele. Minha tese de doutorado foi amplamente baseada em seus ensinamentos. Tenho aplicado seu método de várias maneiras em minha carreira profissional, na prática e na pesquisa", afirmou a pedagoga Eeva Anttila, professora da Universidade de Artes de Helsinque, na Finlândia, país que é referência internacional no ensino.

"A maior vantagem de sua metodologia é a abordagem antiopressiva e não autoritária, a pedagogia dialógica e respeitosa que ele promoveu. O problema é que suas ideias têm sido usadas para fins políticos –o que, em meu entendimento, nunca foi seu propósito inicial", disse a finlandesa.

Alex Trinidade faz parte do grupo de estudantes brasileiros ativistas em Cambridge
Alex Trindade faz parte do grupo de estudantes brasileiros ativistas em Cambridge - BBC

"No Brasil, nossa situação atual é muito, muito difícil", diz Alex Trindade, um dos alunos brasileiros que tiveram a ideia da escultura de Freire em Cambridge. "Bolsonaro está atacando tudo relacionado à universidade pública, às ideias de Freire. A ideia é (...) impedir que professores ou escolas discutam política ou gênero ou qualquer coisa do tipo, ou que ofereça um caminho para as pessoas desenvolverem suas próprias ideias."

'Cultura do cancelamento'

Em seu escritório, cercado por pilhas de livros educacionais e uma coleção impressionante de plantas, a diretora do corpo docente de Cambridge, Susan Robertson, diz que a ênfase de Freire sobre a importância "da escuta, da tolerância e do diálogo" tornou-se ainda mais importante no contexto da "cultura do cancelamento".

A prática de "cancelar" pessoas porque suas opiniões podem ser ofensivas ou de negar-lhes um espaço para falar se tornou um assunto de debate acalorado não apenas nas redes sociais, mas também nos campi.

Neste mês, a Cambridge Union Society baniu o historiador de arte Andrew Graham-Dixon depois que ele ofendeu estudantes ao imitar Adolf Hitler durante um debate sobre a existência do "bom gosto".

O presidente da entidade chegou a falar na criação de uma lista dos oradores proibidos, mas mais tarde disse ter se equivocado.

Além disso, a professora Kathleen Stock, acusada de transfobia por suas opiniões sobre identidade de gênero, deixou seu cargo na Universidade de Sussex, dizendo que passou "um momento horrível". Procurado pela BBC, o Ministério da Educação não quis comentar o tema nesta reportagem.

Para Robertson, todas as instâncias de discurso consideradas ofensivas devem ser levadas em conta, mas, em geral, a cultura do cancelamento "bloqueia as possibilidades de ouvir e ouvir uns aos outros e, então, atuar olhando para a frente".

Susan Robertson é chefe da Faculdade de Educação de Cambridge, onde a escultura de Paulo Freire foi instalada
Susan Robertson é chefe da Faculdade de Educação de Cambridge, onde a escultura de Paulo Freire foi instalada - BBC

"Como podemos realmente falar de questões difíceis sobre as quais podemos ter pontos de vista diferentes?", se pergunta. "São essas qualidades que Freire diria que são absolutamente necessárias para conseguirmos sair de algumas posições polêmicas bastante desafiadoras."

Para Freire, o ensino ocorre a partir do diálogo entre professor e aluno, desenvolvendo assim capacidade crítica e preparando os estudantes para sua emancipação social. No jargão do meio, o método Freire é o oposto ao conceito "bancário" de educação –aquele no qual o professor "deposita" o conhecimento nas mentes dos alunos. Para Freire, a educação é construída em conjunto.

Em Cambridge, a escultura do educador brasileiro também se tornou um símbolo de "resistência aos ataques de extrema direita à educação", afirma Robertson. Citando "ataques agressivos" a educadores em países como o Brasil, ela alerta que também há problemas do tipo no Reino Unido –embora haja "claramente uma diferença".

"O que vimos aqui, no entanto, é um posicionamento conscientemente simplista demais de acadêmicos e educadores como distantes e fora de alcance", diz ela.

E os esforços para "descolonizar" o currículo são um exemplo. Este tópico, aliás, atingiu o ponto de ebulição em várias instituições de ensino, incluindo Cambridge.

Em 2017, um ex-aluno foi alvo de ofensas graves nas redes sociais e na mídia por pedir que mais autores pertencentes a minorias étnicas fossem acrescentados ao seu curso de inglês.

Sua foto chegou aparecer na primeira página do jornal britânico Daily Telegraph com o título "Estudante força Cambridge a dispensar autores brancos". O veículo depois publicou uma correção do texto.

Ameaça contra a liberdade de expressão

Esforços para tornar o currículo mais inclusivo também levaram a mídia britânica a retratar acadêmicos como "ativistas de esquerda perigosos com a intenção de 'cancelar' textos-chave ou de policiar o pensamento de funcionários e alunos", diz Robertson, da Universidade de Cambridge.

"Acusações semelhantes às vezes são feitas aos próprios alunos, por levantarem preocupações sobre questões como mudanças climáticas ou identidade de gênero", acrescenta a professora. "São questões complicadas, que exigem reflexão cuidadosa, discussões abertas e respeitosas e o reconhecimento de diferentes pontos de vista."

Para Robertson, "descrever professores ou alunos como histéricos, hipersensíveis ou um sinal de virtude não apenas encerra o debate como também aponta implicitamente um conjunto estreito e imutável de pontos de vista sobre o que a educação deveria ser".

O corpo docente da universidade diz que há "preocupação sobre como universidades e escolas estão sendo alvo de debates frequentemente fabricados de 'guerra cultural', principalmente no Reino Unido e nos Estados Unidos". E embora sejam "menos violentos" do que em outros países, "muitos usam uma retórica igualmente tóxica para promover abordagens anti-progressistas à educação".

Mas Hugo Williams, que preside a Associação Conservadora da Universidade de Cambridge, diz que não é "justo" comparar ataques de extrema direita a universidades com "as declarações de políticos e jornalistas preocupados com a liberdade de expressão e liberdade acadêmica".

"Uma defesa robusta das políticas educacionais que estão sendo criticadas seria uma resposta mais relevante do que reclamações sobre ser 'alvo'", afirma Williams.

No ano passado, a universidade votou contra as regras propostas que exigiriam que funcionários, alunos e palestrantes convidados fossem "respeitosos" com as opiniões e "identidades" dos outros.

Essas novas regras "teriam sido prejudiciais à liberdade acadêmica", diz Williams. "Muitas pessoas se sentiram encorajadas pelo fato de que a esmagadora maioria dos acadêmicos em Cambridge ainda está disposta a defender a liberdade acadêmica."

O ator e apresentador britânico Stephen Fry, um dos mais respeitados do país, afirma estar entre aqueles preocupados com a ameaça à liberdade de expressão. Para ele, os apelos por "respeito" podem ser bem intencionados, mas as pessoas não podem "exigir" que suas opiniões sejam respeitadas.

Questões sobre liberdade de expressão, liberdade de escolha e o que deve e não deve ser ensinado em universidades e escolas estão alimentando debates em todo o mundo.

Nos EUA, as escolas se tornaram um campo de batalha, com professores perseguidos por causa das regras relacionadas ao combate à Covid-19 e protestos de alguns pais por causa do ensino da teoria crítica racial.

Estátuas e esculturas em xeque

As próprias estátuas têm sido um símbolo-chave nos debates sobre o legado do colonialismo nos últimos anos, especialmente desde o assassinato de George Floyd e as manifestações de Black Lives Matter (Vidas Negras Importam) no ano passado.

Muitas foram derrubadas, inclusive no Reino Unido, onde uma estátua do traficante de escravos Edward Colston foi arrancada e jogada no porto de Bristol.

Em Cambridge, um galo de bronze saqueado em uma operação britânica foi retirado da exposição no Jesus College, em 2016, e retornou à Nigéria no mês passado.

Mas na mesma universidade, outra escultura está ganhando mais força, a de Paulo Freire.

Segundo Alex Trindade, ele e outros estudantes ativistas brasileiros esperavam inicialmente que a iniciativa aumentasse a conscientização sobre os ataques à educação no Brasil e simbolizasse a importância do acesso à educação.

Paulo Freire é um dos autores mais citados do mundo na área de humanidades
Paulo Freire é um dos autores mais citados do mundo na área de humanidades - Divulgação/Instituto Paulo Freire

Mas agora há um terceiro objetivo: "inspirar" as pessoas, especialmente de lugares como a América Latina, a saber "que podem fazer mais" quando se trata de elaborar e analisar práticas de educação em um momento tão crucial.

"Eles podem se perceber como nós nos percebemos: não apenas como acadêmicos, mas como responsáveis", diz ele. "Você pode transformar."

Em artigo acadêmico analisando o legado de Paulo Freire pelo mundo, o professor de filosofia da educação da Universidade da Califórnia (EUA), Ronald David Glass, aponta que o mérito de Freire está no método que valoriza a "consciência crítica, transformadora e diferencial, que emerge da educação como uma prática de liberdade".

"Paulo Freire viveu sua vida no espaço dessa consciência; é por isso que inspirou e energizou pessoas no mundo inteiro, e é por isso que seu legado se prolongará muito além de qualquer horizonte que possamos enxergar agora", escreveu Glass.

"Freire sempre estava buscando se tornar mais humano, tornar possível que outros fossem mais humanos e, se acolhermos esta busca com tanto amor e determinação quanto ele, então uma maior medida de justiça e democracia estará ao alcance."

*Com informações adicionais da BBC News Brasil

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