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João Marcelo Borges

Milton Ribeiro ilustra um governo que mistura descaso com mitomania

Em sua gestão no MEC, o que vimos foram a violência nas palavras, a omissão e o elitismo

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João Marcelo Borges

Pesquisador do Centro de Gestão Pública e Políticas Educacionais da FGV. Foi Diretor de Estratégia Política do Todos Pela Educação e especialista em educação do Banco Interamericano de Desenvolvimento

Milton Ribeiro tomou posse no Ministério da Educação (MEC) em 16 de julho de 2020, na esteira de uma crise institucional deflagrada pela divulgação da reunião ministerial em que o então ministro da pasta, Abraham Weintraub, sugerira ao presidente da República e a seus colegas de gabinete "botar todos esses vagabundos na cadeia, começando no Supremo Tribunal Federal".

Weintraub reclamava que Brasília gera distanciamento e alienação por parte dos detentores do poder político em relação aos problemas das pessoas comuns, isso enquanto discursava diante de um telão com propaganda do governo federal na qual figuravam apenas crianças brancas e loiras. Tratava-se de peça publicitária do programa Pró-Brasil, uma iniciativa gestada na Casa Civil, então ocupada pelo general Braga Netto, para promover investimentos estatais como forma de reaquecer a economia.

Esse breve lembrança da ascensão de Ribeiro ao MEC, creio, ilustra de maneira sintética a gestão do presidente Bolsonaro em todas as áreas do governo: uma mistura de descaso com mitomania, de teoria conspiratória com ignorância, de autoritarismo com incompetência, de anúncios espalhafatosos com a inoperância.

Milton Ribeiro em evento no Palácio do Planalto, em Brasília, em fevereiro deste ano - Evaristo Sa/AFP

Doutor em educação pela Universidade de São Paulo e ex-reitor em exercício da Universidade Presbiteriana Mackenzie, Milton Ribeiro não possuía experiencia em ou conhecimento de políticas públicas educacionais quando assumiu o MEC. Assim como seus antecessores, ele não foi escolhido para o cargo por suas credenciais profissionais, mas sim por atributos pessoais valorizados por Bolsonaro: a submissão ao chefe, o uso instrumental da religião, o falso moralismo e, por que não dizer, certa predileção por ferir os mais vulneráveis.

O mais longevo dos ministros da Educação do governo Bolsonaro colecionou declarações absurdas em sua passagem pela pasta. Ainda antes de tomar posse, emergiu um vídeo do então pastor Milton Ribeiro defendendo o castigo físico em crianças como medida necessária para a cura. "Não importa", diziam os defensores de Ribeiro, "pois nessa fala ele estava na função de pastor e não de autoridade governamental".

Conquanto seja inegável que é possível separar convicções religiosas da ação profissional, essa separação é dificultada, senão desincentivada, por um governo que usa a religião como instrumento – quer para promover uma disputa entre "o bem e o mal", como alardeou Bolsonaro no último fim de semana, quer para autopromoção, como o fez Milton Ribeiro, já enquanto ministro, ao permitir que Bíblias Sagradas contendo suas fotos fossem distribuídas.

Quando tomou posse, as instituições de ensino brasileiras estavam há três meses sem aulas presenciais em função da pandemia de Covid-19 e o quadro sanitário piorava diariamente. Àquela altura, a experiência internacional e os especialistas em saúde pública já alertavam para um período longo de restrições por causa da pandemia. Nunca tantos alunos, profissionais da educação e instituições públicas e privadas de ensino precisaram tanto de um MEC competente, ágil, disposto a ouvir e a agir, a coordenar e negociar, a inovar e a apoiar a preservação do que já conquistamos. Nunca, também, o Ministério da Educação faltou-lhes tanto.

Enquanto autoridades nacionais de educação no mundo inteiro batalhavam por mais investimentos em suas áreas, esforçavam-se para construir soluções emergenciais rápidas, ainda que incertas em sua eficácia, para tentar mitigar os efeitos imediatos da pandemia, bem como buscavam construir confiança entre os diversos agentes do setor educacional, Milton Ribeiro restringia-se a exigir o retorno imediato das aulas presenciais na educação básica, sem jamais ter conseguido fazer isso sequer na rede federal de ensino que, mal ou bem, é atribuição direta do MEC (a despeito da autonomia universitária).

Enquanto as desigualdades educacionais aumentavam no Brasil, com milhões de alunos sem aula remota ou sequer acesso a materiais impressos, Ribeiro ocupava-se em atuar contra um projeto de lei construído pela bancada da educação do Congresso Nacional para oferecer dispositivos e conectividade aos estudantes mais pobres do país.

Impedir o acesso à educação e despreocupar-se com sua qualidade eram, infelizmente, atitudes esperadas de Milton Ribeiro. Afinal, ele mesmo reconheceu que, em sua visão, o ensino superior é para uma "elite", algo que um ministro jamais poderia defender em um país no qual menos de 20% das pessoas com idade entre 25 e 34 anos possui um diploma.

Por outro lado, assim como Quincas Berro D’Água teve duas mortes, é preciso reconhecer dois MECs nesses últimos vinte meses.

Na gestão de Milton Ribeiro, para a sociedade, o que vimos foram a violência nas palavras, a omissão, o elitismo, a homofobia travestida de moralismo falso, o cristianismo instrumentalizado e, mais recentemente, suspeitas de improbidade.

Dentro do MEC, contudo, e graças aos esforços dos quadros técnicos do ministério, também foram gestadas boas iniciativas nesse período. Com efeito, a plataforma construída para apoiar redes públicas de educação básica na retomada das aulas presenciais é muito boa, mas chegou com mais de um ano de atraso. O empréstimo recentemente aprovado pelo Banco Mundial para aprimorar a qualidade dos anos finais do ensino fundamental nas regiões Norte e Nordeste também é um passo na direção correta.

Por que poucas pessoas conhecem essas iniciativas, mesmo no campo da educação? Porque elas foram desenvolvidas a despeito de Milton Ribeiro. O melhor que ele fez nesses casos foi não atrapalhar –ou atrapalhar pouco. Não se envolveu, não deu visibilidade e nem usou seu cargo para liderar o país em torno do maior desafio educacional de nossa história. Por isso, é bem provável que essas iniciativas tenham pouco efeito prático nas redes de ensino.

A personagem de Jorge Amado pôde desfrutar de uma noitada com os amigos antes de se jogar no mar e morrer pela segunda vez. Milton Ribeiro não teve essa grandeza. Empossado para dar fim a uma crise institucional, ele sai deixando no colo do presidente da República outra crise, agora política. O pastor Milton Ribeiro certamente não se queixará, afinal, para ele, a "correção" necessária para a cura requer "severidade, rigor...deve sentir dor". Entrou desconhecido, destacou-se como reacionário e sai sob suspeita de improbidade. Parabéns aos envolvidos!

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