Ministério da Educação não tem dados sobre eficácia de jogo de alfabetização citado por Bolsonaro

Estudos no exterior mostram que o Graphogame ajuda na compreensão fonética, mas não influencia na parte ortográfica e na leitura

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Brasília e São Paulo

Apesar de o presidente Jair Bolsonaro (PL) citar no debate neste domingo (16) que um game educacional adotado pelo governo alfabetizaria crianças em seis meses, o MEC (Ministério da Educação) nem sequer tem estudos de eficácia do aplicativo no aprendizado.

O governo não sabe, portanto, qualquer efeito do uso dessa ferramenta, muito menos sobre o suposto sucesso mencionado pelo presidente. Estudos internacionais mostram que o jogo colabora com a compreensão fonética, mas não influencia na parte ortográfica ou fluência de leitura.

Ainda a despeito da fala de Bolsonaro, a avaliação federal da educação básica, aplicada em 2021, mostrou que os estudantes de alfabetização tiveram a maior queda de aprendizado na pandemia. Os resultados frustraram aposta do governo federal em ações de ensino em casa, com esse game comemorado pelo presidente e a entrega de livros para famílias.

ilustração com cinco balões. Os quatro primeiros tem as letras O, A, U e D, a do fundo tem uma caveira de pirata
Tela do Graphogame, jogo de alfabetização adotado pelo MEC e citado por Bolsonaro no debate - Reprodução

Bolsonaro disputa o segundo turno da eleição presidencial com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

Chamado Graphogame, o aplicativo foi anunciado pelo MEC em 2020, conforme publicado pela Folha na ocasião. Trata-se da adaptação para o português de um jogo de alfabetização criado por pesquisadores finlandeses.

O aplicativo tem evidências de sucesso em outros países. No Brasil, no entanto, o governo federal só tem informações sobre quantidade de downloads, de cerca de 1,7 milhão, mas não há outros dados, como sobre o perfil de famílias atingidas —o desafio no país é chegar aos mais pobres.

O MEC não tem estudos sobre a efetividade do uso nem tampouco sobre algum sucesso no processo de alfabetização. A pasta informou à reportagem, em resposta a pedido de Lei de Acesso à Informação, que não coleta dados de usuário e, portanto, não tem acompanhamento pedagógico da ferramenta.

A adaptação do Graphogame para o português foi desenvolvida pelo Instituto do Cérebro, ligado à PUC-RS (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul). À Folha, o órgão informou que um estudo de impacto está em andamento mas ainda não há resultados.

"O aplicativo pode ser uma ferramenta de apoio, mas que sozinho não é capaz de alfabetizar", diz nota da PUC-RS.

"Este não foi e não é o objetivo da iniciativa e dos pesquisadores em nenhum momento. Para uma criança ser alfabetizada ela precisa de instrução sistemática e consistente, precisa de vivências e sem dúvida alguma do apoio da escola e especialmente de educadores".

No debate realizado neste domingo, Bolsonaro citou o game como iniciativa central para recuperação da aprendizagem no pós-pandemia. "O nosso ministro da Educação tem um aplicativo que foi aperfeiçoado e já está há um ano em vigor, chama-se Graphogame", disse. "No passado, no tempo do Lula, a garotada levava três anos para ser alfabetizada. Agora, em nosso governo, leva seis meses."

Questionada, a assessoria de imprensa do MEC confirmou que "não é possível identificar tais usuários ou sua região." Segundo a pasta, professores é que teriam relatado a alfabetização de estudantes em até seis meses —não há detalhes oficiais sobre esses supostos relatos.

Bolsonaro já havia citado o game no começo do mês em evento em Brasília. O presidente ignorou, no entanto, os dados do Saeb (Sistema de Avaliação da Educação Básica), divulgados em setembro, que mostraram aumento do percentual de crianças sem saber ler e escrever.

O Graphogame tem foco em crianças entre os quatro e os nove anos. Os 1,7 milhão de downloads representam 9% dos estudantes entre quatro e dez anos.

O jogo envolve uma metodologia voltada para o desenvolvimento da consciência dos sons da língua oral e sua relação com as letras, processo classificado com instrução fônica, em ambiente, além de lúdico, adaptativo (quando a criança acerta mais, fica mais difícil).

O próprio guia do jogo, elaborado pelo MEC, indica que ele deve ser usado "no apoio à preparação para a alfabetização" e que o "aplicativo não substitui a atuação dos professores".

A pasta pagou R$ 274,5 mil para liberar o uso do programa no país, mas não obteve licenciamento para professores acompanharem online a evolução das crianças.

Um estudo publicado na revista acadêmica Frontiers in Psychology concluiu que o uso do jogo em quatro países africanos —Namíbia, Quênia, Tanzânia e Zâmbia— ajudou na compreensão fonética dos alunos, mas não influenciou na parte ortográfica ou na fluência de leitura.

Uma pesquisa feita pela Universidade Iberoamericana, com alunos da República Dominicana, também identificou que os alunos tiveram melhor reconhecimento de sílabas após usar o jogo, mas sem melhorar outras habilidades de leitura.

O Graphogame foi desenvolvido a partir dos resultados de um estudo conduzido na Finlândia em 1992 para identificar as dificuldades de alfabetização em crianças com dislexia. Por isso, a ênfase do jogo na identificação de letras e fonemas.

Sob Bolsonaro, o desempenho dos alunos brasileiros no ciclo de alfabetização despencou com o fechamento das escolas por causa da pandemia. A queda em língua portuguesa foi bem acentuada na prova aplicada no 2º ano do ensino fundamental, destoando inclusive do prejuízo identificado nas outras etapas da educação básica.

Houve uma perda de 24,5 pontos na proficiência média desses estudantes entre 2019 e 2021. A nota média passou de 750 para 725,5, o que é considerando por especialistas uma queda muito forte.

O Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais), responsável pela avaliação, organiza os resultados da avaliação de alfabetização em uma distribuição percentual por oito níveis de proficiência. O governo não definiu a partir de qual nível um aluno é considerado plenamente alfabetizado.

A distribuição dos alunos por níveis já mostra o recuo dos estudantes mais novos. Em 2019, havia 8,8% dos alunos no nível 1 ou abaixo do 1. Na avaliação de 2021, o índice foi de 23,6% dos alunos no nível 1 ou abaixo dele.

Em matemática, a queda da nota média dos alunos de 2º ano do ensino fundamental foi menor, de nove pontos. Passou de 750 para 741.

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