Indústria do preso cresce mais que a de carros, diz disseminador de prisões humanizadas

Para Valdeci Ferreira, fundador da Fbac, desafio é mudar ideia que bandido bom é bandido morto

Eliane Trindade
Itaúna (MG)

​Vencer o Prêmio Empreendedor Social no ano passado foi um divisor de águas para Valdeci Ferreira e o movimento das Apacs (Associação de Proteção e Assistência aos Condenados). 

A premiação fez o modelo de prisões humanizadas ganhar mais visibilidade tanto no Brasil quanto internacional, pelo fato de Ferreira, à frente da Fbac (Fraternidade de Assistência aos Condenados), ter sido indicado também em março como Empreendedor do Ano na América Latina pelo Fórum Econômico Mundial. 

O Prêmio Empreendedor Social está com inscrições abertas; participe

A seguir, os principais pontos da entrevista sobre a franquia de prisões sem polícia, onde um preso custa dois terços menos do que no presídio comum, e que registra índices de reincidência criminal em torno de 20% nas Apacs contra 85% no tradicional. "Desafio é mudar a ideia de que bandido bom é bandido morto", diz Ferreira.

 

Folha - O que significou o Prêmio Empreendedor Social para a Fbac e as Apacs? 

Valdeci Ferreira - O prêmio foi um reconhecimento não só do trabalho do Valdeci, mas de muitas pessoas envolvidas no movimento das Apacs, sem as quais não teríamos ganhado essa dimensão. O primeiro impacto da premiação foi junto aos voluntários, aos funcionários e aos recuperandos. Houve um momento de celebração muito bonito. Depois, teve um movimento para fora. Nós estamos sendo desde então demandados o tempo todo. Pessoas que querem visitar as Apacs, levar esta experiência para suas cidades em outros estados e também fora do Brasil. Os órgãos de comunicação também descobriram as Apacs. Saíram reportagens no ‘The Guardian’ e também em veículos alternativos, o que faz o projeto ser cada vez mais conhecido.

Qual é o desafio de disseminar o método e como se prepara?

Antes da premiação, nós já estávamos em processo de construção de um planejamento estratégico para 2020, quando devemos estar com uma média de cem Apacs administrando centros de reintegração social, prédios próprios, sem polícia. O modelo completo. Fomos atropelados pela própria história com essa premiação e o planejamento está sendo refeito em razão de um crescimento ainda maior. A meta da Fbac é ter uma unidade em cada comarca do Brasil. Ou seja, ter mais de 5.000 Apacs. Além de planejamento, é preciso um novo modelo de governança. Contamos com duas empresas de consultorias que estão nos ajudando a desenvolver um modelo de gestão para as Apacs e outro para a Fbac. Nos demos conta de que com a estrutura atual não vamos conseguir um salto de escala maior com sustentabilidade e sem desviar a metodologia.

Como é atuar em um cenário de encarceramento em massa e contra o que você chama de indústria do preso? 

Eu diria que o maior desafio desde o começo das Apacs é junto à comunidade. É mudar paradigmas de uma sociedade preconceituosa, via de regra, em relação ao preso. Aquela ideia de que o preso tem de sofrer, que bandido bom é bandido morto. A premiação foi muito importante neste sentido também, pois nós estamos tendo uma visibilidade grande. Muitas vezes, as pessoas são contrárias porque não conhecem. A partir do momento que percebem que o método Apac reduz os índices de reincidência de 85% para abaixo de 20% e o custo é muito menor, isso já serve como sinal de alerta. Cada preso recuperado é um bandido a menos na rua. Hoje, nós temos dezenas e dezenas de cidades que jamais aceitariam a construção de um presídio comum, mas aceitam quando se fala que é uma Apac. 

Como se dá o convencimento de autoridades? 

É um desafio a tarefa de também mudar a mentalidade de autoridades. É preciso entender que a justiça não se realiza quando a pessoa recebe a condenação judicial. Ela só acontece quando, além da sentença, se oferece uma terapêutica penal que permita que essas pessoas que um dia feriram a sociedade possam reciclar seus valores, mudarem suas mentalidades e se tornarem pessoas de bem. Após o prêmio, temos recebido dezenas de contatos de juízes, promotores, secretários de Justiça de outros estados que querem conhecer e replicar esta experiência.

Quais são as maiores dificuldades práticas para expansão das Apacs? 

São dois vetores de dificuldade. Por que, apesar de termos 45 anos, há tão poucas Apacs e com um número tão reduzido de recuperandos em um universo tão grande de encarcerados? Em primeiro lugar, pelo desconhecimento. Em segundo, nós estamos nadando contra a correnteza. É fato notório que o sistema prisional é falido no Brasil e no mundo inteiro. É uma verdadeira indústria, a que mais cresce. Mais que a automobilística, a farmacêutica e o agronegócio. São muitas corporações, instituições e pessoas que, de um modo geral, vivem e sempre viveram às custas da miséria dos encarcerados. 

Outro empecilho é o crime organizado que domina as penitenciárias?

Esta é uma realidade que não tínhamos há 20 anos, assim como o crack, a desestrutura da família e o encarceramento de jovens cada vez maior. São muitos os desafios. A nossa metodologia está consagrada, mas ao mesmo tempo precisa ir se adequando às novas realidades. As facções criminosas se inserem neste contexto. Eu entendo que elas ocupam dentro das prisões exatamente o espaço que o Estado, por sua omissão, não ocupa. Se o Estado atendesse aquilo que a Lei de Execução Penal preceitua, sobretudo no rol das assistências material, jurídica, além de saúde e educação, não haveria necessidade da existência de facções. Elas nascem e se mantêm porque o Estado é omisso. 

E o mais grave hoje é que as facções extrapolaram os muros das prisões. Controlam o interior e já começam também a controlar o exterior. Ou seja, uma pessoa condenada fica dez anos dentro de uma prisão, cumprindo sua pena, e quando sai, ela continua presa , pois tem que continuar assaltando, traficando para pagar uma dívida com a facção criminosa. É extremamente complexo. Não temos ideia de onde isso vai parar.

Como é lidar com essa realidade na prática na implantação de uma Apac?

Quando fomos implantar a primeira Apac numa capital, começamos por São Luís do Maranhão. É uma unidade que nasce dentro do contexto mais grave que o Brasil assistiu, que foi Pedrinhas [penitenciário de segurança máxima]. Aquelas cenas de decapitações. Ali nasce uma comunidade que diz: precisamos tentar uma alternativa. Nasce a Apac. Conseguimos um espaço oferecido pelo estado. Tínhamos os voluntários, apoio da comunidade, mas não tínhamos clientela . Pedrinhas e outros presídios do Maranhão estavam todos dominados pelas facções. Na medida que nossos voluntários começaram a ir para dentro das prisões e explicaram o que é a Apac, foi feito então um pacto com os membros das próprias facções. Se vai para a Apac, está autorizado a romper com a facção, dentro e fora. Com poucos meses ocupamos todas as vagas em São Luís e agora ampliamos para um outro espaço. Já passamos de 40 vagas para 80. Já temos seis e estamos para abrir mais duas Apacs no Maranhão.

O Brasil vive uma série de operações contra a corrupção. É um perfil de preso que dentro do sistema comum seria visado pelas facções. Existe pressão para recebê-los nas Apacs?

Temos uma frase escrita diante de todas as Apacs: Aqui entra o homem, o delito fica lá fora. Existem critérios rígidos para a pessoa ter a oportunidade de ir para uma Apac. Primeiro, já deve estar condenada. Segundo, a família deve residir na comarca na qual a Apac está localizada. Terceiro, o preso deve manifestar por escrito o seu aceite das regras e vontade de mudança de vida. E o quarto critério é da antiguidade. Existe uma fila de espera. Se nós tivemos numa comarca presos do mensalão, do petrolão ou do que quer que seja, se ele está dentro destes critérios também pode ter oportunidade de entrar numa Apac.

Muitos dos delatores colocam no acordo de colaboração com a Justiça o benefício de serem transferidos para uma Apac?

Isso é uma novidade. As Apacs, assim como a Fbac, não entram neste mérito. A transferência de um preso é um critério delineado pela Justiça e é um atributo da Justiça. A nós cabe receber estas pessoas que a Justiça determinou que fossem para as Apacs.

Quantos foram?

Uns cinco pelo menos. Deve ter uns três ainda cumprindo pena como todos os demais. Não tem regalias. É um recuperando. Neste momento, a nossa sociedade está polarizada e intolerante. Com tanta facilidade de julgar sem se dar conta de que não existe nada mais humano que o erro, o crime. É humaníssimo. Inclusive, os que cometeram crimes no mensalão, na Lava Jato. São crimes aos quais que todos nós estamos sujeitos o tempo inteiro. Dar-se conta desta humanidade, dessa vulnerabilidade é importante. Não nos dá o direto de julgar o outro, mas de respeitar, acolher e fazer esforço diário de não cometer este mesmo tipo de desvio.

O Brasil nunca mais vai ser o mesmo depois da Operação Lava Jato. As nossas instituições nunca mais serão as mesmas, nem o direito penal, o direito processual penal, a sociologia e a psicologia criminal. Nunca mais serão os mesmos. Teremos que rever muitos dos novos conceitos.

O que responde para quem diz que os presos têm regalia na Apac?

Diria que não se trata de um hotel cinco estrelas. É uma prisão, embora muitas vezes não se pareça com uma. Muitos dos nossos recuperandos afirmam que é mais difícil cumprir pena na Apac do que no sistema comum, porque temos regras e disciplina rígida. O preso é obrigado a trabalhar, a estudar, a lavar a própria roupa, arrumar a cama e a participar dos  atos de valorização humana. O que é triste é saber que as Apacs se tornaram conhecidas e referência por cumprirem a lei. 

Como lida com a questão do aspecto religioso das Apacs. O projeto hoje fala em espiritualidade?

A base da metodologia Apac é a valorização humana. Tratar o ser humano que chega para cumprir uma pena com sujeito de direitos e deveres. O método é composto de 12 elementos fundamentais. Um deles é espiritualidade. Eles constituem uma base sólida para que estas pessoas que cumprem pena na Apacs não só modem seu comportamento, mas também a mentalidade. Entendam que cometeram crimes, às vezes crimes gravíssimos, hediondos. O nosso método leva a uma responsabilização do dano causado. Mas, ao mesmo tempo, dentro deste aspecto espiritual o recuperando deve se dar conta de que todo homem é maior do que seu erro. De que todo homem é maior que o seu crime. 

As Apacs surgem dentro da Pastoral Carcerária ligada à Igreja Católica. Quando vê o crescimento do trabalho dos evangélicos nos presídios?

Eles têm um trabalho importante dentro das prisões. Se só a religião fosse suficiente para mudar a pessoa não precisaria de Apac. O preso tem outras necessidades que antecedem a necessidade de Deus. E muitas vezes, sobre o manto da religião eles buscam obter favores, privilégios, regalia. Ou então, eles se escondem. Qual é o maior anseio de quem esta preso? A liberdade?. Eu diria que existe um outro antes: é a sobrevivência. Religião hoje em muitos lugares se tornou uma ótima opção de sobrevivência dentro do presídio. Você tem pavilhões de unidades prisionais no Brasil e fora só de católicos, só de evangélicos É uma forma de sobreviver. Agora, infelizmente, a religião por si só não é suficiente. Assim também como não só o trabalho. 

É o caso das prisões privadas, que entendem que o importante é colocar o homem para trabalhar, para plantar, para quebrar pedra. Que aí ele vai se autossustentar, sustentar a família, a família da vítima. Mas se só as prisões privadas fossem suficientes, não precisava de Apac. Prisões privadas neste formato nos Estados Unidos e Holanda, por exemplo, teriam resolvido o problema. Só que a lógica das prisões privadas é o lucro. Então, é mais um engodo e uma forma de explorar a própria mão de obra do preso. Não se investe na recuperação. A pessoa que sai e reincide de novo no crime, volta para ser mão de obra. É outro cliente daquele sistema. Se a lógica das prisões privadas é o lucro, a logica das Apacs é a recuperação. Nós não queremos que eles voltem. Queremos que saiam e sejam capazes de caminhar com as próprias pernas, sem dependerem das muletas da instituição.

Cabe ao estado sustentar as Apacs?

Em absoluto. O estado ele tem a tarefa constitucional de construir, equipar e manter as prisões. É para isso que pagamos muitos impostos. As Apacs é a presença da sociedade civil organizada que chega para auxiliar o Estado nesta tarefa difícil do cumprimento da pena e execução penal, porque o Estado já se mostrou secularmente incompetente. Agora, não estamos aqui para substituir o Estado, mas para ser uma alternativa.

Existe chance de virar sistema?

Não. Falo com base nas pesquisas que fizemos no passado com mil presos no sistema comum: 85% dizem que querem ter uma oportunidade, trabalhar, estudar; 10% são indiferentes e 5% falam o crime é interessante, não quero romper. Talvez hoje este índice seja maior por causa das facções. De pronto, você pode dizer que a Apac é para 85% da população prisional. E eu digo que é verdade. Estou dentro de presídios o tempo todo. Quando você estende a mão, eles agarram. O sistema é a antessala do inferno. É violento, desumano, massacra as pessoas. Bastaria ter prisões de segurança máxima no Brasil hoje para no máximo 7% da população carcerária. Aí você tem líderes de facção criminosas, psicopatas, pessoas que o método Apac não vai atingir. 

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