Descrição de chapéu BBC News Brasil

O agente congolês na cracolândia, a boliviana no SUS, o angolano no 'rapa' e outras histórias de recomeço no Brasil

Conheça as trajetórias de quatro imigrantes hoje trabalham no serviço público em São Paulo

Leandro Machado
São Paulo | BBC News Brasil

A médica boliviana Lourdes Ojeda procurava um emprego no Brasil. O angolano Antonio Coteo queria terminar a faculdade. Promessa do futebol boliviano, Jorge Lopez decidiu morar em São Paulo após encerrar sua carreira nos gramados. Já o congolês Kanga Heroult tinha só a roupa do corpo ao desembarcar, pois havia acabado de sobreviver a um fuzilamento.

De origens e histórias diferentes, esses quatro imigrantes hoje têm algo em comum: trabalham no serviço público em São Paulo. Eles estão nas áreas da saúde, atendimento aos trabalhadores, fiscalização do comércio ambulante e até no auxílio a dependentes de crack. 

Segundo um relatório do Observatório das Migrações Internacionais (Obmigra), órgão ligado ao Ministério do Trabalho, o Brasil tem cerca de 130 mil imigrantes no mercado de trabalho formal. O Haiti é a nação mais representativa nesse cenário, com 25,7 mil pessoas empregadas, seguido por Portugal (8.000) e Paraguai (7.700).

No serviço público paulistano, quem contrata não é a prefeitura diretamente, pois estrangeiros são proibidos de prestar concurso no Brasil –essa situação se inverte em caso de naturalização. Os imigrantes trabalham para empresas terceirizadas ou organizações que prestam serviços para a administração municipal. 

Uma delas é a Iabas (Instituto de Atenção Básica e Avançada à Saúde), entidade social que administra unidades de saúde no centro e na zona norte da cidade. Segundo a organização, 50 dos seus 3.078 funcionários são estrangeiros, entre médicos, agentes de saúde e de administração.

Um deles é o boliviano Jorge Lopez, de 62 anos. Ele percorre diariamente as ruas do Bom Retiro para checar como anda a saúde de milhares de estrangeiros que povoam o tradicional bairro do centro da cidade. 

Natural de La Paz, Lopez veio para o Brasil no final dos anos 1980, desiludido com a diverticulite que pôs um fim precoce a sua carreira de jogador de futebol. Trabalhou em oficinas de costura enquanto estudava modelagem em uma universidade particular.

O trabalho no Sistema Único de Saúde (SUS) chegou em 2005 depois de várias tentativas frustradas. "Fiz três provas e cinco entrevistas para entrar", conta.

Lopez foi um dos primeiros estrangeiros na unidade de saúde que fica no coração do Bom Retiro, local conhecido por historicamente abrigar imigrantes judeus, bolivianos e coreanos. Cerca de 40% dos pacientes do posto são estrangeiros, segundo o Iabas. 

O boliviano foi escolhido para facilitar a entrada de seus compatriotas no SUS, movimento às vezes complicado pelo medo. "Os bolivianos são tímidos, têm receio de sair de casa e, muitas vezes, medo de serem deportados por falta de documentos", conta.

Sua colega Jeanneth Orozco afirma que os colegas bolivianos se sentem mais à vontade quando conversam com agentes do país deles. "Os brasileiros visitavam as casas e as pessoas abriam só uma frestinha da porta", diz a agente, que chegou no Brasil em 2004 e está no SUS desde 2009. Ela já foi responsável pelo auxílio de saúde de 25 grávidas no Bom Retiro.

Para Lopez, os agentes estrangeiros acabam funcionando como uma espécie de conselheiros dos recém-chegados. "Explicamos que o SUS é gratuito, porque muita gente acha que precisa pagar. Também falamos onde dá para tirar os documentos, onde tem posto da Polícia Federal, escola, hospital", afirma.

No mesmo posto, trabalha a médica Lourdes Ojeda, boliviana de 27 anos. Sua trajetória de imigração foi um pouco diferente dos colegas de unidade: formada em uma universidade pública, Ojeda teve dificuldade em encontrar emprego em seu país. "Há muitos médicos na Bolívia e os salários são ruins. Por isso, decidi viver no Brasil", conta.

Para revalidar seu diploma de Medicina, ela precisou fazer duas provas - oral e escrita, em português. "Tive de vir antes para aprender e me acostumar com a língua", diz.

Segundo Marcelo Haydu, coordenador do Instituto de Reintegração do Refugiado, uma das principais dificuldades para estrangeiros conseguirem emprego no Brasil é a burocracia para a revalidação dos diplomas universitários. 

"Algumas provas de proficiência em português, como a da USP, são muito complicadas. Desconfio que até brasileiros teriam dificuldade em passar", diz Haydu.

Para Leonardo Cavalcanti, professor da Universidade de Brasília e coordenador do Obmigra, imigrantes enfrentam um fenômeno conhecido como "inconsistência de status", ou seja, quando chegam ao Brasil, eles não conseguem trabalhar em suas áreas de formação. 

"Normalmente, os imigrantes têm formação média ou superior, pois os pobres sem estudo nem conseguem migrar", explica. "Porém, quando chegam aqui, enfrentam as dificuldades burocráticas de revalidação dos diplomas, um processo que exige uma série de documentos. Tem muito imigrante com formação superior trabalhando de auxiliar de pedreiro."

Haydu conta um caso de um refugiado sírio que não consegue revalidar seu curso de engenheiro porque a USP exige um documento que sequer existe na Síria. "Não há normas claras reguladas pelo Ministério da Educação, cada universidade tem sua regra", diz.

'Como uma criança'

Um desses casos é o do refugiado Tresor Balingi, congolês de 30 anos. Formado em Direito mas sem conseguir revalidar o diploma no Brasil, ele trabalha de atendente no CAT (Centro de Apoio ao Trabalho e Empreendedorismo), órgão da prefeitura de São Paulo. 

O problema, no entanto, não o incomoda: ele gosta do serviço. Balingi chegou ao Brasil em 2013 sem falar sequer uma palavra de português. "Quando você chega num país diferente, começa tudo de novo, como uma criança", explica sobre seu período de adaptação.

Ele trabalha ao lado de dois compatriotas, os atendentes Hidras Tuala e Mabiala Nkombo. Segundo a prefeitura, eles foram contratados para atender refugiados e imigrantes africanos, cada vez mais numerosos na cidade. O trio faz carteiras de trabalho, habilitação de seguro desemprego e auxílio de contratações. 
 
Nkombo, de 23 anos, explica que a facilidade com várias línguas foi determinante para sua contratação. "O CAT percebeu que havia muita dificuldade de comunicação com os estrangeiros. Nós falamos seis línguas fluentemente", diz ele, citando português, inglês, francês, espanhol, lingala e criolo. "Os africanos acabam naturalmente confiando mais em nós."

Seu colega Tuala, de 24 anos, não esconde a vontade de voltar ao Congo um dia. "A gente sempre pensa que amanhã vai ser melhor. Esse dia ainda não chegou", diz ele, que melhorou sua formação cursando comunicação visual em uma universidade do Brasil.

'Terminar os estudos'

Estudar no Brasil foi o que motivou a vinda do angolano Antonio Coteo, de 21 anos. "Sempre gostei do Brasil e queria muito terminar a faculdade de engenharia elétrica", conta. Ele estuda em uma faculdade particular em São Paulo com bolsa integral.

Enquanto finaliza seu curso, Coteo trabalha como assistente de fiscalização do comércio ambulante, serviço popularmente conhecido como "rapa". Vários funcionários dessa área no centro da cidade são imigrantes africanos.

Por outro lado, em ruas com forte comércio ambulantes, como a 25 de Março, a presença de africanos como camelôs é bastante alta. Quando um comerciante é irregular, seus produtos são apreendidos pelo "rapa".

Coteo diz que nunca houve conflito com colegas africanos por causa de seu trabalho. "Minha relação com meus 'irmãos' é muito boa, não trato ninguém mal. Explico o que eles precisam fazer para regularizar a situação e conseguir os documentos. Sou uma espécie de tradutor", diz. 

Os refugiados

Segundo a Coordenação Nacional de Imigração, órgão do Ministério do Trabalho, o Brasil deu 311 mil autorizações para estrangeiros trabalharem no país entre 2011 e 2016. Pouco mais de 200 mil carteiras de trabalho foram emitidas nesse período.

Por outro lado, a autorização de vistos de refúgio continua um processo lento - em média, ela demora dois anos. A fila chega a 86 mil pessoas e tende a crescer por causa da massa de venezuelanos que diariamente chega ao Brasil.

Quando pousou em São Paulo, o congolês Kanga Heroult, de 38 anos, já tinha o documento que autorizava seu refúgio político no país. Era uma outra época, em 2008, quando o número de pedidos de refúgio era bem menor.
Hoje, Heroult trabalha como agente de saúde na região da cracolândia, área de consumo e venda de crack no centro da cidade. Ele auxilia dependentes químicos a entrar no serviço municipal de recuperação, o Redenção.

Ele fez três provas para entrar no serviço público. "A gente cuida e orienta (os usuários de crack), me dou bem com todos", conta ele. "Muitas pessoas que estão na rua hoje são da Nigéria, Tanzânia, Congo..."

A trajetória de Heroult até o Brasil é dramática. Em 2007, ele se filiou em um partido de oposição à ditadura que governa o Congo. Acabou preso depois de participar de algumas manifestações contra o assassinato de um líder estudantil. 

"Por um mês e 15 dias eu fui torturado", diz, emocionado. 
Heroult conta que, naqueles dias na prisão, dez pessoas eram levadas todos os dias em uma van. Nunca mais eram vistas. Um dia, chegou a sua vez.

"Eu sabia que iria morrer. Então comecei a cantar uma música sobre Deus. Um dos soldados ouviu e reconheceu a letra. Ele se aproximou e disse que sua família era da mesma igreja que a minha", conta.

O congolês foi levado na van com outros nove prisioneiros.
"O carro parou ao lado de um rio. As outras pessoas foram retiradas, mas eu fiquei. Ouvi o barulho delas sendo mortas e jogadas no rio. O motorista abriu a porta do carro e disse que nunca mais queria me ver. Eu estava livre."

Heroult escapou da morte e, dias depois, embarcou para o Brasil.

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