Descrição de chapéu

A moda pode ser menos agressiva na exploração da natureza

A brutalidade do uso de fauna e flora no século 19 chamou a atenção de grupos de vanguarda na proteção da natureza

Suzana M. Padua

O lado nefasto para termos artigos belos, sedutores e que nos atraem nem sempre é percebido pelo consumidor. Não que a maioria das pessoas se importasse se soubesse, mas vale chamar a atenção de como a moda explora insustentavelmente a natureza e outros seres humanos em seu processo produtivo. E isso não é de agora.

Há uma exposição em curso no Victoria & Albert Museum (V&A) de Londres, na qual a moda é apresentada com artigos usados no passado e alguns atuais, mostrando sua origem e a forma de produção. O maior absurdo e a prova cabal da inconsequência humana está em um vestido do final do século 19, bordado com as asas de cinco mil besouros vindos da Índia, atraentes pela cor verde fosforescente. Outros insetos foram igualmente traficados de partes diversas do mundo, inclusive da América Latina, para fins semelhantes. 

Peles de animais sempre foram cobiçadas e ainda são, especialmente por quem mora em locais frios que precisa de agasalhos e outros itens para se aquecer. Por muito tempo, o foco principal foram os castores, caçados indiscriminadamente, o que levou, já no início de 1600, ao decréscimo desses animais na Inglaterra.

Ora, nada mais fácil do que caçar outros animais mesmo que oriundos de locais longínquos, já que os ingleses eram exímios navegadores e possuíam colônias espalhadas pelo mundo. Passaram rapidamente a buscar espécies advindas do Canadá, e assim lá se foram as focas. Ou, para proteger as delicadas mãos femininas da época, os albatrozes foram mortos aos milhares para se aproveitar apenas suas plumagens do peito, brancas e macias.

Essa tendência só aumentou, e ao final do século 19, o uso de peles e penas chegou ao seu ápice. Devido ao papel predominante de colonizador e regente dos mares, a Inglaterra se tornou o grande comerciante desses luxos, que quanto mais raros e exóticos mais valiosos no mercado europeu. Eventos especiais eram organizados para a venda por compradores ingleses e de outros países.

Afortunadamente, a brutalidade do que estava acontecendo acabou chamando a atenção de grupos de vanguarda na proteção da natureza, não só pela quantidade, mas pela crueldade dos processos de abate da fauna e a extração de espécies na flora. Surgiram, assim, as primeiras leis de proteção da avifauna em 1869, e, em 1911, foram assinados os acordos internacionais iniciais para o controle da caça e do comércio de peles. 

Vestimentas decoradas com motivos da natureza passaram a ser comuns, inclusive retratando espécies que despertavam interesse da nobreza, como macacos, por exemplo, que só foram conhecidos após as grandes navegações. Mas, como colorir as linhas e os tecidos? Foi assim a exploração de nosso pau-brasil, extinto em muitos locais da costa brasileira. O pau-brasil era apreciado por tingir tecidos com tonalidades avermelhados, novidade até então para a elite europeia. 

A história do Brasil mostra como as riquezas naturais foram exploradas continuamente. Mas, especificamente em relação à moda, juntamente com países vizinhos, a borracha extraída nos emaranhados das matas amazônicas causou danos irreparáveis. Os seringueiros, tratados como escravos, morreram aos milhares, como relata a exposição do V&A.

Detalhes desse período podem ser melhor compreendidos em um livro de Ferreira de Castro, escrito em 1930, “A Selva”, que deflagra o sofrimento e as injustiças pelos quais passavam os seringueiros no Brasil. O mesmo aconteceu com os índios peruanos, o que acabou sendo revelado por Roger Casement, causando indignação e revolta na própria Inglaterra.

Segundo registros do V&A, mais de 30 mil índios morreram em decorrência da exploração da borracha amazônica, que acabou sendo levada para Sri Lanka, Singapura e Malásia, onde foi plantada como monocultura para suprir as crescentes demandas da industrialização. As propriedades de elasticidade, flexibilidade e resistência à água da borracha amazônica eram adequadas aos processos industriais emergentes à época. 

Dentre os itens modernos expostos no V&A, o que chama mais a atenção é o jeans. Sua fabricação causa danos socioambientais irrecuperáveis, como mostram vídeos da própria exposição. Milhares de pessoas trabalham em condições indignas e a poluição da água é avassaladora. Uma calça jeans demanda cerca de 3.500 litros de água, considerando a plantação e a produção do algodão e o tingimento do tecido.

Além disso, as químicas utilizadas destroem o ambiente, pois o índigo, elemento natural que antes era utilizado, foi substituído por fórmulas sintéticas altamente poluentes. E o que agrava ainda mais: todos os elementos levam doses agressivas de agrotóxicos que contaminam a água de rios, lagoas, reservatórios e mares.

Um documentário canadense intitulado Riverblue retrata esse processo e como a moda tem sido relapsa em não assumir responsabilidades socioambientais adequadas em sua cadeia de produção. Ganhador de inúmeros prêmios, Riverblue denuncia marcas famosas que sabem o que acontece, mas não mudam sua forma de produção. 

No entanto, hoje existem caminhos promissores, e o V&A expõe alguns exemplos. Ingredientes sintéticos utilizados na moda, por exemplo, evitam a exploração tradicional da natureza. A biologia sintética é de fato um campo novo que oferece a chance de se fabricar linhas, texturas e materiais diversos e coloridos, independentemente de elementos naturais. Esta é uma revolução em curso sem que a maioria das pessoas se dê conta.

São muitas questões éticas que merecem ser analisadas com cuidado pela sua complexidade. Hoje é possível se ter leite, carne ou couro sem a presença de uma vaca ou um medicamento sem a matéria-prima advinda da natureza, ou as populações tradicionais locais deixarem de ser ressarcidas, pois tudo pode ser produzido em laboratórios. 

O IPÊ (Instituto de Pesquisas Ecológicas), instituição da qual faço parte, promoveu em sua sede em Nazaré Paulista (SP), em julho deste ano, um encontro com especialistas do mundo todo, liderado pelos doutores Kent Redford e Nicholas Macfarlane, a pedido da IUCN (União Internacional para Conservação da Natureza, na sigla em inglês), instituição respeitada no meio ambientalista. A ideia central foi estudar meios de tirar o melhor proveito possível dessas tecnologias para o bem do planeta.

São muitos os aspectos a serem analisados, mas em relação à moda e aos temas aqui descritos, esse campo pode contribuir para se evitar a exploração insustentável de penas, peles, asas de animais ou borracha. Esses elementos passam agora a ser fabricados em laboratório, sem afetar a fonte, a natureza.

Pode parecer estranho e até assustador, mas se biologia sintética ou qualquer outra ciência que venha a surgir for levada em prol de pessoas e do meio natural, por que não? Hoje, por exemplo, seria possível a confecção de vestidos com assas de besouros, sem a morte de um animal sequer! Só isso, já mostra o grande potencial desse novo campo. 

Suzana M. Padua

Cofundadora do IPÊ (Instituto de Pesquisas Ecológicas) e integrante da Rede Folha de Empreendedores Socioambientais

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