Setor da moda investe para dar transparência à produção

Tecnologia para indústria justa e sustentável foi tema de 'Diálogos Transformadores'

Mulher trabalha em máquina de costura
Setor da moda investe para dar transparência à produção - André Felipe - 26.mai.15/Folhapress
Rosane Queiroz
São Paulo

Aplicativos que rastreiam dados, etiquetas que revelam o histórico da roupa, novas tecnologias e soluções costuradas por uma inteligência coletiva. 

Essas são algumas propostas para tornar a indústria da moda mais transparente e que foram debatidas durante a décima edição do “Diálogos Transformadores Transparência: Um Valor para a Moda e para o Mundo”.

O evento realizado pela Folha, com o apoio do Instituto C&A, na terça-feira (4), reuniu especialistas e empreendedores em torno do tema. 

“Compreender os pontos fracos e fortes dessa cadeia tão complexa, que passa por mais de cem processos, pode auxiliar na criação de novos caminhos e políticas públicas para estimular a transparência no setor”, disse a estilista Eloisa Artuso, diretora educacional do movimento Fashion Revolution, responsável pelo primeiro Índice de Transparência na Moda no Brasil, a ser lançado em outubro. 

O documento —que rastreia e divulga as políticas, práticas e processos produtivos de 20 marcas representativas no país— foi o ponto de partida para discutir a importância de abrir as informações de uma indústria que apresenta desafios de visibilidade. 

Marcel Gomes, secretário-executivo da ONG Repórter Brasil, que tem como missão identificar e tornar públicas situações que ferem direitos trabalhistas e ambientais, acredita que, nesse cenário, a transparência é o elemento-chave.

“A partir desse tipo de diálogo, abrem-se visões e iniciativas, que permitem vislumbrar um panorama mais amplo e buscar soluções em conjunto”, afirmou. 

Novas tecnologias

Para estimular a transparência, na visão de Gomes, é necessário fiscalização e cobertura sistemática desses temas. Um exemplo de tecnologia que tem contribuído nesse sentido é o aplicativo Moda Livre, criado em 2013 pela ONG. A plataforma sistematiza e disponibiliza dados da cadeia produtiva da moda.

“É um aplicativo que serve como bússola para o consumidor, mirando a reputação das empresas e gerando pressão positiva”, explicou. 

Leonardo Marques, professor de sustentabilidade da UFRJ e consultor em gestão no varejo, vestuário e serviços, destacou o blockchain, tecnologia que cria uma base de dados compartilhados e pode ser usada para formar um índice global das transações no mercado da moda.

“O blockchain promove confidencialidade e confiabilidade das informações. A ideia é escanear a etiqueta e ter todo o histórico da roupa.”

A etiqueta “Alinha – Por Trás da Roupa” é outra ideia que estimula uma moda mais justa. A iniciativa do Instituto Alinha, negócio social com foco na melhoria das condições de trabalho e de vida de costureiros, funciona como estratégia de financiamento do projeto e também é um importante passo rumo a transparência. 

É usada por marcas que trabalham com oficinas alinhadas com as devidas certificações e vem com o recado: “Peça feita com trabalho justo”.

O desafio é conscientizar os consumidores para que exijam transparência de suas marcas favoritas e passem a usar roupas com os novos valores, a partir do índice de transparência. 

“Uma roupa já não é feita mais apenas pela marca –ela se tornou o último elo da cadeia”, disse Marques. “Com a informação sobre as práticas daquela empresa divulgada, as pessoas passam a querer saber se a tinta do tingimento está sendo jogada no rio, se uma costureira está sendo explorada num fundo de quintal ou trabalhando em más condições.” 

Diagnóstico cruel 

No segundo bloco, Oded Grajew, presidente do conselho deliberativo da Oxfam Brasil, que promove movimento global de luta contra a desigualdade, chamou a atenção para o diagnóstico como caminho para a cura da doença a partir dos números da indústria: 1,2 milhão trabalhando na ilegalidade, que representam 46% do total da mão de obra, segundo dados do Dieese, Ipea e IBGE.

Além disso, 1,8 milhão dos empregados do setor são mulheres, e há 114 mil crianças trabalhando em confecções no ambiente familiar. 

“A mulher costureira é impactada pela violação dos direitos, pois boa parte é feita à margem da legislação. O setor de vestuário contabiliza o maior número de casos de trabalho escravo em área urbana e ausência de transparência em diversos elos da cadeia”, afirmou.

“Apesar dos esforços, a questão ainda não foi resolvida e temos um grande contingente em condições análogas à escravidão. Nosso ovo da serpente são as desigualdades. E no ano que vem, esses números continuarão válidos?” 

Para Eloisa, a discussão, uma vez colocada, não há como voltar atrás. “A transparência é um caminho sem volta. Uma tendência global que começa a encontrar espaço aqui”, afirmou. “Muitas marcas usam sustentabilidade como marketing, mas é preciso que a informação seja crível.”

Giuliana Ortega, diretora-executiva do Instituto C&A, que visa ações em prol de uma indústria da moda mais justa e sustentável, disse que a transparência é a principal alavanca para a mudança.

“O índice é importante porque abre os dados de uma forma clara e acessível, para tomarmos uma decisão como sociedade. Não podemos fingir que esses números não existem, mas realmente olhar e discutir abertamente soluções. Esse é o papel das grandes marcas”, pontuou. 

Caso inspirador 

A plateia conheceu também a história de Pedro Ruffier, criador da Movin, marca de roupas que já nasceu propondo soluções para incentivar o comércio justo e sustentável, com design minimalista, tingimentos orgânicos e matérias-primas inovadoras.

Primeira marca de roupas certificada como Empresa B no Brasil, a Movin, criada em 2011, produz 300 mil peças por ano, considerando a sustentabilidade em todos o processo.

“No site, disponibilizamos quem são os fornecedores, quanto ganham nossas costureiras. Muitas empresas ainda se valem das auditorias privadas, e eu acredito que é preciso abrir os dados na totalidade”, afirmou. 

“Esse é meu propósito de vida, pois é uma das indústrias que mais polui e passa por todos os ODSs (Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU).”

O fundador da Agenda Pública, Sérgio Andrade, reforçou que os pontos sensíveis da cadeia da moda estão dentro da agenda dos ODSs (Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU).

“Existe um ODS sobre emprego digno, que trata de relações de produção e consumo. Essa agenda nos traz um convite interessante, que é pensar novas formas de resolver problemas, entender quais são as causas, os atores envolvidos e que tipo de iniciativa podemos fazer nessa lógica intersetorial. O ataque precisa ser sistêmico”, propôs. 

Corte e costura 

Concluindo o debate, os participantes concordaram que é preciso fazer um corte e costura entre Ministério do Trabalho, Associações de Lojistas, ONGs e até mesmo feiras de roupas, para cada vez mais buscar a formalidade e a resolução dos problemas. 

“A transparência é um dos tijolos do processo, pois com as violações aos direitos dos trabalhadores expostas, a marca tem seu filme queimado, e o consumidor está cada vez mais atento”, disse Gomes.  

“Só se pode viver bem juntos se a sociedade tiver menos injustiças. Para isso, é preciso construir relações de confiança e isso só se faz com transparência. Precisamos vencer o medo da transparência”, ressaltou Grajew, que levou a questão para todos os setores. 

Para Ortega, ter um espaço para debater os temas já significa um grande avanço. “Há cinco anos, essa conversa sequer existia. Informação é o ponto de partida. Com a colaboração de todos, faremos uma mudança sistêmica. Precisamos de uma inteligência coletiva para contarmos outra história, mais justa e mais transparente”, concluiu. ​

Diálogos Transformadores Transparência: Um Valor para a Moda e para o Mundo foi apresentado pelo Instituto C&A

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