'De 30 pessoas da minha geração, poucos estão vivos', afirma morador da Maré

Após se envolver com tráfico, Alcir Antero entrou para Luta pela Paz e não se preocupa mais com fogos na favela

Cristiano Cipriano Pombo
Rio de Janeiro

“É algo maravilhoso eu poder escutar tiro e não precisar saber o que é, para onde correr. Eu escutar fogos avisando que a polícia está entrando e não precisar me mover da cama é ótimo." A frase é de Alcir Antero, 28, morador do Complexo da Maré, um conjunto de 16 favelas com 150 mil moradores disputado por três facções criminosas e milícia.

Logo cedo, ele conheceu a vida do crime. Tudo começou quando perdeu a mãe, aos 13 anos, e foi colocado para fora de casa pelo padrasto, que até então ele acreditava ser seu pai. A perda, o desamparo e a ida para as ruas foram a senha para que Alcir se envolvesse no mundo do crime.

Alcir Antero, 28, egresso do sistema carcerário e beneficiário da Luta pela Paz
Alcir Antero, 28, egresso do sistema carcerário e beneficiário da Luta pela Paz - Renato Stockler

Neste momento, ele já tinha participado três anos dos programas da Luta Pela Paz, mas a vida do crime o distanciou da organização liderada por Luke Dowdney, que concorre ao Prêmio Empreendedor Social 2018 e na categoria Escolha do Leitor.

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A organização atua na prevenção à violência armada em comunidades afetadas pela criminalidade e na reinserção social de egressos do tráfico de drogas com abordagem holística de atividades e serviços integrados. Ações que marcaram o reencontro com Alcir em 2014.

“Foi uma conversa com a psicóloga da Luta que me fez pensar que até aquele momento eu não tinha vivido a minha vida. Eu tinha sobrevivido. E ela me perguntou quando eu ia começar a viver de verdade”, afirma.

 

Eu sou da comunidade da Maré, nasci aqui e cresci aqui. E vim parar na ONG [Luta Pela Paz] através do boxe. Fiz três anos de boxe, mas por causa de alguns problemas na vida eu me afastei.

Eu tive perdas familiares. Minha mãe ficou doente e não resistiu. Aí meu padrasto, que eu achava até então que era meu pai, me botou para fora de casa. Foi quando, na minha vida, começaram a acontecer as coisas, que saí da casa que eu achava que era a minha. Ali foi onde tudo começou.

Comecei a colar com a rapaziadinha. Perdi o interesse em estudar, praticar o boxe e passei a praticar furtos no centro e, depois, assaltos. Aí acabei preso e não tive apoio de ninguém. Quando eu saí, não tinha nada. Então fui para o tráfico, mas acabei preso de novo. Saí com a tornozeleira, o que foi desenrolado por policiais corruptos [que tiraram o equipamento]. 

Aí teve aquele momento de pacificação em outras comunidades, e tinha muitos bandidos vindo para cá.  Foi quando a ONG [Luta Pela Paz] pensou num projeto, e Luke [Dowdney] marcou uma reunião. Decidi ir. Eu e outras pessoas ouvimos o que ele tinha para dizer, e, de 50 cabeças, só 12 ficaram, e eu fui um deles. Aqui tive uma segunda chance porque, quando a gente está no tráfico ou num assalto, é como se não houvesse oportunidade.

O tráfico parece ser a solução para tudo, e tem que aprender a conviver com o risco de tomar um tiro, correr da polícia, cair de uma laje correndo, pulando, ter uma invasão dos caras da outra facção e ser baleado. É como se a única maneira de solucionar as coisas fosse aquela ali. 

E o Luke chegou e foi bem claro: ‘Olha só, a mudança só depende de vocês, a gente só vai indicar o caminho’. Foi um motivador também porque o projeto Luta pela Paz tem uma história na comunidade e, como conseguiu uma estrutura como essa [um prédio, com academia, salas de aula, de trabalho, tatame], passou mais confiança ainda. Para um ex-presidiário sem muita opção de repente aparecer um projeto que vai abrir portas, pensei: é o momento. 

Foi quando a menina engravidou de mim e eu comecei a ter acompanhamento psicológico, social, um mentor, mas ainda tinha aquele receio porque é difícil a aceitação de quem está de fora. Pelo projeto de empregabilidade da Luta, consegui um trabalho, o que foi maravilhoso. Tive meu primeiro trabalho de carteira assinada. Quando ia completar um ano, veio à tona na empresa os meus antecedentes e fui mandado embora, mas não desisti. 

Cheguei até a ser preso pela terceira vez, desta vez não por crime. Me deram voz de prisão dentro do fórum, numa audiência. E ir a essa audiência foi uma coisa muito difícil. A gente sabe que não existe justiça para gente como eu.

Consultei um e outro. Eu estava pendendo para não ir. Quando falava com algum parente, era ‘Ah, você quem sabe’. Só que eu tive uma conversa com a psicóloga. Ela me perguntou quando eu ia parar de sobreviver e passar a viver de verdade. Primeiro eu pensei que ela estava maluca. Depois, no porquê seria uma sobrevivência. E vi que, se eu não aparecesse lá para resolver, eu ia ficar foragido, não ia poder ver minha filha nascer. 

Então reuni todo mundo, e falei que eu acreditava demais no projeto, estava decidido no que eu queria. Foi quando tudo o que eu esperava ouvir lá fora, eu ouvi aqui no projeto. A assistente social virou e falou: ‘Oh, eu vou estar contigo, vou fazer um esforço para o que for’. O mentor também. Todo mundo veio com uma palavra certa. 

Decidi ir ao fórum, para dar a minha versão na defensoria pública. E eu fui preso, mas não fazendo besteira, o que foi algo também difícil de processar e compartilhar com as pessoas que conviviam comigo. Eu, que sonhava em ser pai, não vi minha filha nascer e pensei que ia ficar sozinho de novo.

Mas recebi visita da assistente social da Luta e minha mentora não desistiu de mim em momento algum. Ela fez carteirinha para ir me visitar sempre na prisão. E foi aí que eles me quebraram porque não me abandonaram. Se tornou algo além do compromisso deles, eles realmente acreditavam em mim, e isso foi o que eu mais precisava sentir do que ouvir, que ainda tinha gente que acreditava em mim. 

Um dia eu consegui a liberdade e voltei para o projeto de novo. Foi quando as coisas começaram a acontecer de uma forma melhor ainda. Consegui outro emprego e até comprei um celular, com dinheiro limpo. Você passa a dar mais valor. No emprego, você vê que, quando as pessoas não têm preconceito, tem a oportunidade de mostrar todo seu lado bom.

Infelizmente, na comunidade, é um lugar ótimo de viver, mas também é complicado. Um jovem, por exemplo, se quiser um trabalho no tráfico, vão dizer para ele que isso não é vida, para ele ir estudar, trabalhar. Mas, se disser que quer formar [no tráfico], que está precisando, eles vão te dar a chance de formar. 

Da minha geração, um monte de gente já morreu, uns 30 e tanto nomes, gente que veio do berço, que aprontou com a gente na boca, que passou fome com a gente de certa forma. Então você sabe que o fim é aquilo ali. A gente uma vez escreveu o nome de todo mundo numa placa. E ao olhar para ela hoje, é triste ver que sou um dos poucos vivos.

Quando me deram a escolha, eu vim e estou vivo por causa da Luta pela Paz. E realizei meu sonho de ser pai novamente, de um menino, de ser o pai que eu não tive. E lutar para ser bom pai para a minha menina, que nasceu primeiro.

É algo maravilhoso eu poder escutar tiro e não precisar saber o que é, para onde correr. Eu escutar fogos avisando que a polícia está entrando e não ​precisar me mover da cama. É saber que posso estar passando uma dificuldade agora, mas no fim do mês o meu está lá certinho, pode chover, que vai estar lá na conta certinho. É uma sensação que para muitos é normal, mas eu estou absorvendo.

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