Descrição de chapéu Dias Melhores

Boxeador e antropólogo usa artes marciais para tirar jovens do crime

Inglês criou a Luta pela Paz para combater violência em favela do Rio e levou ONG para 26 países

Cristiano Cipriano Pombo
Rio de Janeiro

​Luke Dowdney é um lutador. Mais do que os punhos, o que o move é a vontade de acabar com a violência.
E esse desejo vem desde pequeno, quando o britânico foi alvo de bullying em uma escola particular em Londres.

“Apanhei muito. Isso mexe com o físico e o mental. Era pequeno e não tinha o que fazer. Como sou teimoso, eu era como o prego em que batiam e voltava. Tinha medo, mas aquilo não iria me dominar.”

Tanto foi assim que o garoto inglês, filho de jornalista e psicóloga, cresceu e se tornou promissor pugilista, chegando a ser campeão do circuito universitário do Reino Unido na categoria de 69 kg a 71 kg.

“Foi uma catarse. Entrei pelas razões erradas. Queria ser testado por alguém que eu pudesse bater de volta. No boxe se aprende rápido que, se errar, vai doer.” As lutas no ringue aos poucos perderam espaço para outro combate na Universidade de Edimburgo.

Como parte dos estudos de antropologia social, Luke testou primeiro a veia empreendedora em Katmandu, no Nepal. Organizava viagens de colegas e, com o dinheiro, ajudou a reformar a escola local.

Depois, impressionado com a notícia da chacina da Candelária em 1993, em que oito meninos foram mortos por policiais no centro do Rio de Janeiro, Luke voltou seu olhar para a violência na sociedade.

Assim, chegou ao Recife em 1995, após ter estudado língua portuguesa por três meses. E, atuando na ONG Ruas e Praças, teve um insight ao se revelar boxeador para as crianças de rua.

“Elas me perguntaram: ‘Você luta?’. E pediram que eu mostrasse como era. Foi a primeira vez que eu tive a atenção total delas, que tinham largado a cola para repetir os meus movimentos.”

No Recife, além de ver o boxe de outra forma, o britânico percebeu como o poder público e as forças policiais eram indiferentes quando uma criança era assassinada.

Com essas ideias na cabeça, Luke voltou a Edimburgo para concluir a faculdade. E, depois de uma temporada como pugilista no Japão, veio de vez para o Brasil. Agora, para o palco da Candelária.

Chegou ao Rio com uma mochila nas costas, em 1997.

“Ele bateu na minha porta. Queria trabalhar com projetos sociais. Achei tão inusitado, e ele estava tão decidido que eu sabia que daria em boa coisa”, afirma o antropólogo e escritor Rubem Cesar Fernandes, que liderava a ONG Viva Rio.

Ao mergulhar de cabeça nas iniciativas da organização, Luke realizou pesquisas sobre a violência e o submundo do tráfico no Rio –que resultaram nos livros “Crianças no Tráfico” (2003) e “Nem Guerra Nem Paz” (2005).

A Luta pela Paz virou projeto social quando o britânico captou um investidor para o Viva Rio e pediu parte do dinheiro para fundar sua instituição. “Achei genial. Ele queria ensinar boxe na favela. Usar a violência controlada, num esporte de luta, para combater a violência armada”, diz Rubem.

E o primeiro ringue dessa luta foi o Complexo da Maré, que abriga 16 favelas, 140 mil moradores e é um território de 9 km² disputado por três facções criminosas e milícias.

“Abrimos buracos no chão para prender a estrutura”, conta Luke sobre a primeiro ringue numa sala de uma associação de moradores da favela.

E a novidade caiu como luva para jovens, motivados, como ele, pela oportunidade de brigar melhor.

“Chegamos para aprender a nos defender. Pô, de graça! Ninguém dava nada aqui. E era inovador por ser um esporte diferente do futebol”, diz Pedro Arthur, um dos primeiros alunos de Luke e hoje supervisor na ONG.

“O jovem precisa descarregar energia para depois ouvir. Não adianta querer conversar antes do treino”, diz Luke.

Para lutar, tinha que merecer a camisa, passar por encontros semanais com psicólogo, núcleo de educação e aula de cidadania. Tamanha ligação com os alunos fez com que fosse comum o inglês percorrer a favela atrás de seus pupilos até em redutos do tráfico.

“Ele ia atrás dos jovens na boca, andava pela favela, isso era inovador. Ele queria os jovens que ninguém queria. Era a sua luta para que eles não morressem”, diz o fotógrafo Ubirajara de Carvalho, líder comunitário na Maré.

“Fui chamado de louco. Colocar boxe num ambiente de violência. Mas violento é o salário mínimo para sustentar uma família toda, é a falta de oportunidade”, diz Luke.

Ao mesmo tempo em que a metodologia calcada em cinco pilares (Boxe e Artes Marciais, Educação, Empregabilidade, Suporte Social e Liderança Juvenil) foi se transformando, a Luta pela Paz cresceu até erguer sede própria na Maré e virar celeiro para o mundo.

De lá, Luke expandiu o trabalho contra a violência para 26 países e 160 organizações, com experiências bem-sucedidas no Reino Unido, na Jamaica e na África do Sul.

Depois de testar a metodologia e provar o seu impacto, Luke buscou garantir a sustentabilidade. Para isso, criou a marca de roupa Luta, comprada pela Reebok. Até 2020, a multinacional reverterá royalties para a Luta pela Paz.

ENXUGANDO GELO

Pai de um menino de quatro anos e vítima de assalto quatro vezes no Rio, Luke ainda se abala com a violência e a truculência policial em operações na favela —foram 41 em 2017, ano em que a Maré registrou uma morte violenta a cada nove dias.

“Imagina um amigo seu te ligar desesperado, com os filhos no chão, porque tem tiroteio na favela.”

Em 2011, o britânico parou para repensar sua atuação. “Já tínhamos ajudado aqui no Rio a mais de 10 mil crianças e jovens. Mas, por mais que a Luta pela Paz crescesse, os números da violência armada na favela não caíam. Era como se eu enxugasse gelo.” Muitos alunos de sua primeira turma na Maré perderam a vida.

Foi aí que o antropólogo passou a combatê-la como um problema de saúde pública. “O Estado e a sociedade só sabem usar punição e repressão. A ONU só há pouco reconheceu a violência como um problema global. E as pessoas que estão nas regiões violentas merecem mais”, diz Luke.

E em 2014, quando a política de segurança do Rio, com as UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora), fez com que criminosos migrassem para a Maré, o britânico reestruturou a Luta pela Paz em ações primárias, secundárias e terciárias, a fim de abrigar aqueles que queriam deixar o crime

“Quando se sai do tráfico e pega cadeia, a sociedade não te aceita. Voltar para aquela vida parece ser a única opção, mesmo sabendo que não é boa”, diz o auxiliar de panificação Alcir Antero, que cumpriu pena por assalto e é beneficiário do Projeto Especial, de atenção terciária. “O pessoal da Luta me acolheu. Fez mais do que um familiar faz.” 

Luke discorda, entretanto, que lide com uma guerra urbana. “Se você fala guerra, justifica o helicóptero atirando sobre a favela.” Fato que levou à morte do estudante Marcos Vinícius da Silva, 14, na Maré, em 20 de junho.

Para o empreendedor social britânico que escolheu o Brasil como pátria para criar tecnologia social inovadora, a questão é estratégica e sistêmica. Deve unir poder público, gestores, empresas, sociedade e cidadãos. 

“Não é impossível resolver”, diz Luke, que, assim como não se vergava ao apanhar na escola, agora se mantém em guarda para a Luta pela Paz continuar de pé contra a violência.

 

Luta pela Paz

Fundação
2000

Área de atuação 
Desenvolvimento humano e combate à violência

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