As chamas que consumiram uma das mais preciosas catedrais da Europa não tiveram impacto apenas na bela Ile de la Cité, onde se encontra a construção medieval. Elas também provocaram lamentações, reflexões e mesmo discussões aqui no Brasil.
Se por um lado descobríamos que tragédias que destroem tesouros culturais não são exclusividade nossa, também entrávamos em contato com um ímpeto e uma mobilização pela recuperação do patrimônio que não havíamos visto por aqui.
E então vem o inevitável questionamento: por que não somos assim? Seguido de uma tempestade de respostas imediatas, quase todas com uma certa dose de razão.
O mais fácil é dizer simplesmente que no Brasil não há cultura de doação. Isso não é verdade. A Pesquisa Doação Brasil, feita pelo Idis (Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social), e muitas outras sobre o tema, já mostraram que cerca de metade da população brasileira costuma fazer doação, pelo menos uma vez ao ano.
Talvez o que falte não seja uma Cultura de Doação e sim uma Doação para a Cultura.
Porque quando temos desastres, como, por exemplo, o rompimento da barragem em Brumadinho, vemos uma grande iniciativa de doadores de todos os tipos, os que dão bens, o que dão recursos financeiros e o que doam seu tempo, trabalhando voluntariamente. Isso acontece porque as pessoas compreendem e se identificam com o sofrimento das vítimas.
Já no caso do incêndio do Museu Nacional, será que as pessoas entendiam a dimensão da perda? Será que se identificavam com aquele acervo e aquela história? Parece que não.
Outro elemento interessante a ser analisado é a atitude das famílias mais ricas da França, que imediatamente anunciaram doações muito volumosas. Esse comportamento certamente inspirou outros doadores a fazerem o mesmo, ainda que com valores bem menores. Mas essas pequenas doações conseguiram dobrar o dinheiro aportado pelas classes mais altas.
Será que se tivéssemos uma iniciativa semelhante dos milionários no Brasil, ela não teria conseguido também atrair doações para o Museu Nacional? Não podemos desprezar o poder do exemplo e da liderança.
Entretanto, também não podemos desprezar o fato de que a França construiu um ambiente propício à filantropia, baseado em generosos incentivos fiscais. Boa parte dos recursos doados pelas grandes fortunas será abatida de seus impostos.
Por fim, há sempre o clássico argumento que justifica a não doação: a desconfiança. Como vamos saber que o dinheiro chegará mesmo ao seu destino e será aplicado na restauração do museu? E esta pergunta não vem do nada, ela está respaldada por centenas de denúncias e escândalos de desvio de recursos.
É bem verdade que no caso do incêndio da Notre-Dame, as instituições envolvidas são duas das mais antigas e sólidas do mundo: a Igreja Católica e o Estado francês. Nem sempre as instituições implicadas são tão robustas como essas duas. Por isso, precisamos desenvolver instrumentos que nos permitam doar e confiar nas instituições também aqui no Brasil.
E no caso específico do incêndio do museu, o governo (Executivo e Legislativo) reagiram e criaram a Lei dos Fundos Patrimoniais exatamente para conceber um instrumento que desse segurança ao doador de que os recursos que ele entregou serão bem geridos e bem aplicados.
Se o Museu Nacional dispusesse de um fundo patrimonial filantrópico, teria sido muito, mas muito mais fácil fazer doações para sua recuperação. Aliás, caso ele tivesse esse fundo, o mais provável é que nunca chegasse ao ponto que chegou porque teria os recursos necessários para a manutenção do prédio e do acervo.
A nossa Lei dos Fundos Patrimoniais é fruto, entre outros, de sete anos de trabalho de advocacy do Idis e de parceiros, que contribuíram com apoio técnico, redigindo propostas de lei e recomendando melhorias, assim como fazendo articulações para que o processo avançasse no Congresso.
O resultado é uma lei com ampla abrangência de causas e que pressupõe uma governança clara e transparente. E que torcemos para que seja aplicada e consiga evitar novas perdas como a do Museu Nacional.
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