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Laís de Figueirêdo Lopes e Eduardo Szazi

Doar importa na pandemia, uma oportunidade de aperfeiçoar legislação

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Doar é um ato de liberalidade, que faz sentido para quem doa e para quem recebe a doação. Normalmente acontece pelo ímpeto de querer ajudar o próximo, para uma ação pontual individual ou estratégia continuada.

É uma forma clássica de mobilização de recursos no campo do terceiro setor, especialmente porque organizações da sociedade civil são sem fins lucrativos e encontram no apoio de terceiros uma forma relevante de captar recursos para suas causas.

Nesse momento, em que estamos vivendo a maior crise humanitária internacional de nossos tempos, o estímulo às doações é ainda mais relevante. Seja para as pessoas que mais precisam diretamente, seja para as organizações que as representam ou que com elas têm contato e confiança nas comunidades para fazer chegar o que precisa.

O Monitor de Doações lançado recentemente pela Associação Brasileira de Captação de Recursos (ABCR) soma hoje o valor de R$ 4 bilhões vertidos no Brasil para apoio aos efeitos da pandemia.

Já ultrapassa os R$ 3,25 bilhões de alocação de recursos do investimento social privado apurados pelo Censo do Grupo de Instituto, Fundações e Empresas (GIFE) durante todo o ano de 2018.

Para aumentar ainda mais essas doações, conectado com o movimento internacional Giving Tuesday Now, este 5 de maio de 2020 é dedicado a uma campanha também no Brasil intitulada de Dia de Doar Agora.

Esse fenômeno das doações faz parte de uma nova era de solidariedade? Estaríamos consolidando uma cultura de doações? O que falta para as brasileiras e os brasileiros doarem mais?

Muito precoce a análise de que estamos nos tornando mais solidários com a pandemia. Mas também não há como negar que os efeitos da COVID-19 está promovendo uma necessária e urgente discussão sobre valores.

Para além da ajuda imediata, estamos instados a repensar o mundo, os Estados Nacionais e a sociedade como um todo. De fato, apesar de importante, não basta apenas que a sociedade faça campanha para que as doações aumentem.

Para além de um motivo concreto que hoje nos une, vivemos todos os dias assistindo situações de vulnerabilidade social e desigualdades que requerem esforços intersetoriais colaborativos para o seu enfrentamento.

Então, se temos motivos e vontade para fazer acontecer, o que falta para aumentarmos esse número de forma mais definitiva?

Já faz um tempo que estamos debatendo no cenário nacional a necessidade de uma cultura de doações.
Desde a agenda do Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil (MROSC), que foi construída no governo federal, entre 2011 e 2016, para aprimorar a regulação incidente sobre as organizações e suas relações de parcerias com o Estado, o movimento por um cultura de doações vem se reunindo e se articulando de forma mais organizada para esse diálogo com os atores públicos e a sociedade.

No livro que sistematiza o processo conduzido pela Secretaria-Geral da Presidência da República, em relação a financiamento e sustentabilidade econômica das organizações, a ação do estímulo a cultura de doações foi registrada como parte dos desafios da agenda do MROSC.Há quem afirme que o problema está no nosso sistema tributário, que taxa as doações, sem incentivo para que mais empresas e pessoas físicas doem. Assiste razão. Vejamos.

A questão específica da tributação das doações é de responsabilidade dos estados, haja vista ser tributo de competência estadual.

São Paulo tem isenção para alguns tipos de organizações, hoje restrita a direitos humanos, cultura e meio ambiente. Poderia ampliar as áreas e simplificar os processos tornando o sistema autodeclaratório como recentemente o fez o Rio de Janeiro, isentando todas e não exigindo certificação prévia das organizações da sociedade civil.

A Ordem dos Advogados do Brasil, seção São Paulo, a partir de provocação feita pela Comissão de Direito do Terceiro Setor, fez apelo ao governador João Doria (PSDB)) que, até o momento, não sinalizou mudanças nesse sentido.

Segundo pesquisa realizada pela FGV Direito SP e GIFE, em parceira com Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), de 75 países analisados, apenas 30 deles tributam doações. Entre esses, 24 concedem a isenção quando se trata de doações às organizações da sociedade civil, e dois deles estabelecem redução de alíquota.

Esse dado ajudou na formulação da Proposta de Emenda à Constituição recentemente protocolada no Senado Federal por uma articulação suprapartidária encabeçada pela Senadora Mara Gabrilli.
A proposta endereça a solução da questão de forma nacional, resolvendo a dificuldade que é para a sociedade civil negociar em cada estado sua regra.

Se a doação for em mercadorias, também incide ICMS, o que interessa em muitos casos no contexto vigente. A saída de mercadoria de estabelecimento comercial configura o fato gerador do tributo e deve seguir a legislação vigente, que não leva em consideração o motivo da saída.

Assim, as doações de bens são consideradas saídas comuns para fins de tributação do ICMS, havendo a incidência do tributo, exceto se o regulamento fizer previsão de isenção específica. A saída de mercadorias por doação, portanto, é tributada pelo ICMS. Minimamente as cestas básicas deveriam ser desoneradas de ICMS, por exemplo.

Outro tema relevante é não taxar as doações estrangeiras. Nesse ponto, a discussão sobre a não tributação pelos estados das doações internacionais está no Supremo Tribunal Federal, em fase de recurso especial com repercussão geral e que, desde 2015, conta com a posição favorável da Procuradoria-Geral da República.

O Projeto de Lei n° 2289, de 2020, isenta de tributos federais as doações de produtos importados do exterior destinadas às organizações da sociedade civil enquanto perdurar a Emergência em Saúde Pública em decorrência da infecção humana pelo novo coronavírus.

Faz-se necessário ainda mencionar a lógica de incentivos fiscais. Existem no Brasil incentivos vinculados a projetos nas áreas de cultura, esporte, criança e adolescente, idosos, saúde, câncer e pessoas com deficiência para doações de pessoas físicas e jurídicas.

Todos requerem uma apresentação de projetos a ministérios ou a conselhos correspondentes. Há um incentivo fiscal específico mais livre que pode ser usado para doações de empresas para organizações da sociedade civil, em geral, a partir da alteração promovida pelo MROSC em 2015 no art. 13, III, da Lei nº 9.249/95.

Mas a conquista de abrir o mesmo incentivo para indivíduos independentemente de projetos, fechado desde 1995, ainda não foi alcançado, ainda que tenha sido proposto no substitutivo do Projeto de Lei 4.643/2012 pelo deputado Paulo Teixeira (PT-SP).

A instituição dos fundos patrimoniais no Brasil foi uma medida relevante feita com a articulação ativa de entidades representativas do investimento social privado, notadamente do Institruto de Desnvolvimento do Investimento Social (IDIS).

A Lei 13.800, de 2019, foi impulsionada pelo incêndio do Museu Nacional do Rio de Janeiro, em setembro de 2018, por meio da Medida Provisória 851/2018, como solução para a ausência de recursos do equipamento público de cultura.

A MP ainda precisava de muitos ajustes para, de fato, ser uma resposta ao cenário de cortes de verbas e diminuição do orçamento na área da cultura.

A ausência de isenção tributária sobre seus rendimentos e de incentivos fiscais decorrentes para recebimento de doações deixa o mecanismo de sustentabilidade um tanto quanto desidratado. Estimular recursos livres é fundamental para as organizações poderem investir no aprimoramento de sua gestão e institucionalidade.

Nos EUA, o tributo sobre transmissão de heranças tem uma alta alíquota, com isenção quando é o valor vertido para causas sociais.

Segundo artigo que tratou a fundo a questão, intitulado “Crise fiscal, desigualdade e tributação de heranças e doações no Brasil. Chegou a hora de reformar o ITCMD?”, alíquotas altas e progressivas sobre heranças e doações permitem a utilização em larga escala de hipóteses de deduções para incentivo de atividades comunitárias e filantrópicas.

Na Europa, em 2014, o total de indivíduos doadores atingiu 44% da população e o montante doado €$ 22,4 bi (Cerphi, 2015). Nos Estados Unidos, em 2015 as doações chegaram a USD 373 bi, desse total, 71% foi feito por indivíduos (The Giving Institute, 2016).

Que modelo poderíamos adotar para o Brasil para tornar mais equânime o nosso sistema tributário no que se refere a taxação das grandes fortunas e da transmissão de herança versus o estímulo às doações? A pandemia está exigindo um Estado mais robusto e descortinando as fragilidades do estado mínimo.

Ao mesmo tempo que queremos um estado provedor de bens, serviços e direitos; precisamos de uma sociedade civil fortalecida, que possa se movimentar em relação aos apoios e mediações que prestam no território, além dos alertas por direitos e críticas que fazem ao Estado. A democracia se faz com o seu tecido associativo fortalecido.

As doações podem ser realizadas a qualquer tempo, por qualquer pessoa, independentemente das medidas de indução jurídica citadas acima serem ou não amplamente implementadas no Brasil. O que não se pode perder é o senso de oportunidade de apoio e ajuda que o momento requer, e de rediscussão do sistema de tributação das doações que a crise nos convida a trazer para a pauta do debate público.

Laís de Figueirêdo Lopes

Sócia de Szazi, Bechara, Storto, Reicher e Figueirêdo Lopes Advogados, mestre em Direitos Humanos pela USP e doutoranda em Direito Público pela Universidade de Coimbra. Foi assessora especial na Secretaria Geral da Presidência da República de 2011 a 2016.

Eduardo Szazi

Doutor em direito pela Universidade de Leiden, é sócio de Szazi, Bechara, Storto, Reicher e Figueirêdo Lopes Advogados, parceiro do Prêmio Empreendedor Social.

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